Solfejo do Objeto Sonoro - Pierre Schaeffer

Pesquisa realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP. Organização e pesquisa: Adriana Lopes Moreira. Traduções: Adriana Lopes Moreira, António de Sousa Dias, Maria Lúcia Pascoal, Rodolfo Caesar e Augusto Piccinini. Audio: Lawrence Shum e Marcelo Maragliano (narração e operação de audio, Estúdio Núcleo de Criação), Pedro Paulo Kohler e Augusto Piccinini (mixagem, estúdio LAMI-USP), Alexy Viegas (masterização, Estúdio 3x7). Exemplos sonoros originais: Pierre Schaeffer. Navegadores recomendados: Google Chrome e Mozilla Firefox


Abertura

1-01 Excerto de Tautologos II, de Luc Ferrari

“O som está presente em tudo; mas os sons, quero dizer, as melodias, que falam a língua superior do reino dos espíritos, não repousam senão no seio do homem”. Assim expressava-se Hoffmann, no alvorecer do Romantismo.

1-02 Melodia tocada em arco de boca

Essa deve ter sido uma melodia à moda de Neandertal, nos tempos do arco de boca, um dos ancestrais dos nossos instrumentos...

1-03 Cinco sons eletrônicos

No alvorecer de uma nova era, a eletrônica, esta é a melopéia do estúdio de Colônia. Estranho retorno às raízes... “No entanto, o espírito da música, tal como o espírito do som, não abrange toda a natureza? Um corpo sonoro, quando tocado mecanicamente, desperta para a vida, manifesta a sua existência, ou melhor, a sua organização, alcançando então o nosso conhecimento”.

1-04 Sequência de harmônicos contidos num som

Mas de que conhecimento estamos falando? A sequência de harmônicos – que se apresenta como a sequência dos números inteiros – provém do homem ou da natureza? O musical e o sonoro compartilham os espíritos de intuição e geometria?

1-05 Solo de cítara hindu

De turbante na cabeça, Hoffmann conclui: “Sendo assim, o músico não estaria para a natureza na mesma relação que o médium e a vidente?”.

Eis o enigma que ousamos enfrentar neste trabalho, que é um complemento do Traité des objets musicaux, o Tratado dos Objetos Musicais, o qual, por sua vez, chegava à conclusão da existência de um dualismo musical: se a música forma uma ponte excepcional entre a natureza e a cultura, evitemos a armadilha alternativa do esteticismo e do cientificismo. Confiemos mais em nosso ouvido, que é uma “visão interior”.

Esta visão é tão viva, esta linguagem é tão clara, que nos esquecemos frequentemente do suporte que o sonoro fornece ao musical; concentramo-nos apenas na notação. Os objetos musicais se reduzem a signos, os quais, por sua vez, remetem a estruturas de referência:

1-06 Algumas notas do Ricercare da Oferenda Musical de J. S. Bach, ao cravo

Para medir a distância entre esses signos da escrita e os objetos reais que eles representam, basta ver as mesmas ideias musicais encarnadas em outros corpos, atitude que é permitida, por vezes, quer pelo gênio do compositor, quer pelo seu tempo:

1-07 Oferenda Musical, orquestrada por Webern (excerto)

Assim constatamos que uma dimensão escapa à partitura tradicional: a do “timbre”. Bem que gostaríamos de formar melodias de timbre, as “Klangfarbenmelodie”, de acordo com as indicações seguras de um solfejo. Mas o solfejo tradicional, de uma forma um tanto simplista no que se refere ao timbre, responde-nos que uma flauta se faz reconhecer pelo seu som flautado... Aqui ficamos um pouco desapontados. Estaria o solfejo escondendo alguma lacuna grave? Será preciso, então, colocar em dúvida até suas máximas mais banais, tais como: uma mínima equivale a duas semínimas?

1-08 Tema rítmico extraído de Durboth, de Guy Reibel, na marimba

Esse ritmo é abstrato; é feito de espaços. Falta-lhe ser habitado pela duração, tal como faltava a encarnação do timbre na partitura esquemática de Bach. As durações irão dar forma ao ritmo, tal como o timbre deu cor às alturas:

1-09 Mesmo tema rítmico confiado a uma voz, depois ao piano

Assim, dos quatro elementos do solfejo, dois parecem assegurados por uma notação quase matemática. Os outros dois, timbre e intensidade sonora, são aproximativos e até mesmo empíricos. Esta notação, contudo, falha perante sons muito simples:

1-10 Gongo, seguido de sua “redução” ao piano

Recordemos a lição dos linguistas: não se pode reduzir uma língua estrangeira aos esquemas da língua materna. Não duvidamos que outras civilizações têm outros instrumentos e outras ideias, assim como um solfejo que lhes é próprio, talvez até mais refinado que o nosso:

1-11 Chatur-Lal comentando a execução da tabla

Agora nos encontramos hesitantes entre um retorno às fontes e um ato de fé na ciência. Ao invés dos nossos quatro valores musicais, a acústica nos propõe três parâmetros inesgotáveis, cada qual com a sua unidade de medida: frequência em hertz, níveis em decibéis e tempo em segundos. Então, a questão fundamental é esta: são os objetos musicais redutíveis a esses parâmetros? Sim ou não? No caso positivo a acústica dará conta da música. No caso negativo ela só dará à música informações a respeito das propriedades físicas do som, cujas correlações com as qualidades musicais ficarão por se estabelecer.

É este o objetivo da primeira parte do nosso trabalho: correlações entre música e acústica.

Primeiro tema de reflexões: Correlações entre espectros e alturas

1-12_1-0

1-13 1-1 Oitavas ascendentes ao piano

Em um fenômeno tão simples, a evidência nos engana. A natureza e a cultura parecem ter se juntado aqui num encontro excepcional. Primeiramente, verifiquemos o que dizem os números: e tomemos, por exemplo, um oscilador vibrando 65 vezes por segundo, ou a 65 hertz:

1-14 1-2 Som senoidal de 65 hertz

Multipliquemos esta frequência por 2, 4, 8 etc. e obteremos o seguinte, que parece coincidir com a sequência anterior:

1-15 1-3 Oitavas ascendentes de sons puros

E assim estabelecemos uma ligação entre um parâmetro, a frequência fundamental, e uma qualidade, a altura. Talvez. Mas ainda resta definir musicalmente a noção de altura. Não seria ela distinta da noção de oitava, que por sua vez se relaciona com uma qualidade específica do nosso campo perceptivo, cujo padrão repetitivo é baseado na série das potências de dois?

1-16 1-4 Oitavas ascendentes de fagote, clarinete e flauta

Ora, é pouco provável que o deus Pan dispusesse de um frequencímetro, e é bem certo também que a música não esperou pelas reflexões de Pitágoras. Qual foi, então, a experiência primeira de todas as civilizações musicais?

1-17 1-5 Piano, som puro e fagote sobre a mesma altura

Jakobson define uma das leis fundamentais da linguagem como uma “relação de alternância”, isto é, “a possibilidade de substituir um termo por outro, equivalente ao primeiro sob um aspecto, mas diferente sob outro”.

1-18 1-6 O exemplo 17 do tópico 1-5 repetido em várias oitavas sucessivas ascendentes

Apesar dos aspectos díspares, aqui agrupados sob o termo timbre, o aspecto equivalente, prestes a formar um código, é precisamente aquilo a que chamamos “altura”. A altura deverá ser considerada em termos de sua definição linguística, ou seja, de ordem psicossociológica, antes de poder ser examinada nas suas correspondências acústicas, isto é, de ordem física e fisiológica. Assim sendo, não nos surpreenderemos se as notáveis coincidências que havíamos constatado nas regiões média e aguda ficarem incertas na região grave:

1-19 1-7 Três oitavas ascendentes de piano, som puro e fagote

A comparação dos três timbres sobre a mesma altura mostra que a referência aos sons puros se revela difícil por duas ou três razões muito diferentes: primeiramente porque os sons puros nesta região são quase inaudíveis; em segundo lugar porque eles frequentemente soam uma oitava mais grave em relação a uma nota de mesma altura, de espectro mais rico e, finalmente, por vezes eles parecem estar desafinados:

1-20 1-8 Como no exemplo 18 do tópico 1-6, em oitavas descendentes

Começamos agora a duvidar do som puro, considerado até aqui como medida-padrão de altura. Podemos também colocar uma pergunta de bom senso, mesmo parecendo estranha: porque é que ouvimos tão mal um som puro na região grave e tão bem um som de espectro mais rico que possui, teoricamente, a mesma fundamental? Não é, então, essa fundamental que se ouve? Será que ouvimos um som grave graças aos seus harmônicos superiores? Eis aí uma supreendente confidência, uma confissão jamais feita nem nos conservatórios, nem nas faculdades! Ela merece ser anunciada com estardalhaço no momento em que se reunirem as provas necessárias. Eis as provas:

1-21 1-9 Nota grave ao piano

Retiremos por filtragem os agudos desta nota, porém preservando escrupulosamente os três primeiros harmônicos: estaremos assim destruindo mais a sua estrutura do que a sua intensidade:

1-22 1-10 O exemplo 21 do tópico 1-9 submetido a uma filtragem que corta os agudos a partir de 300 hertz

Façamos agora o contrário: cortemos apenas a fundamental por meio de uma filtragem rigorosa (de 50 decibéis), por conseguinte sobre toda a oitava inferior. Eis aqui esta nota de piano, sem sua frequência fundamental:

1-23 1-11 O exemplo 21 do tópico 1-9 submetido a uma filtragem que corta a frequência fundamental

A nota é idêntica à original. O que confirma nossas palavras. O grau, noção musical de altura, corresponde, no registro grave de nossos instrumentos, à frequência nominal de uma fundamental que, fisicamente, não existe a maior parte do tempo. Esta constatação é tão importante que nos espantaríamos se tivéssemos sido os primeiros a fazê-la. Felizmente não o somos, mas nosso mérito reside no fato de tirarmos o maior número de consequências desse fenômeno que até hoje parece ter sido ignorado. Vamos ver como ele se aplica diferentemente aos três registros de alturas. Realizemos, com efeito, a mesma filtragem da fundamental nos registros médio e agudo do piano:

1-24 1-12 Nota de piano no registro médio, seguida da mesma nota filtrada como no exemplo 23 do tópico 1-11

A nota no registro médio, filtrada, é ouvida na mesma altura, mas o timbre é seriamente afetado:

1-25 1-13 Idem, numa nota aguda de piano

No registro agudo, o timbre é mais que afetado; o som tônico passa para um estágio superior: a nota é “oitavada”. Repetimos a experiência, identicamente, com outros instrumentos: fagote, clarinete e oboé. Ouçamos os sons originais, seguidos de sua variante com a fundamental amputada:

1-26 1-14 Idem, com notas de fagote, clarinete e oboé

Ora, esta experiência é repetida quotidianamente milhões de vezes: cada vez que ouvimos uma sinfonia através de um rádio de pilhas, ela deveria oitavar, se nossa percepção não nos fizesse ouvir musicalmente os sons graves fisicamente ausentes. A antiga concepção que faz da frequência um parâmetro identificado com a altura deve, então, ser abandonada. Para aqueles que ainda duvidam, eis um último argumento:

1-27 1-15 Som “traiçoeiro”

Se diminuirmos a velocidade de leitura desse som pela metade, todo o sistema de frequências que o define fisicamente, ao ser dividido por dois, deveria oitavar para o grave:

1-28 1-16 Som “traiçoeiro” lido duas vezes mais lento

Porém, o som não oitavou, apenas desceu meio tom. Devemos, então, rever todas as noções de base que têm sido trocadas com mútua confiança entre acústicos e músicos. Ao invés de ensinar que a altura é percebida graças a uma fundamental e o timbre graças a um espectro harmônico, será melhor dizer que nosso ouvido deduz a altura tanto mais facilmente quanto maior for o número de harmônicos contidos no som, ou seja, quando o som for de espectro mais rico.

Mas quando os acústicos estudam o ouvido, fazem-no sobretudo em relação aos sons puros, que não contêm um espectro, mas somente uma fundamental:

1-29 1-17 Som puro senoide ao oscilador

Ou em relação aos “sons brancos”, que tem um espectro contínuo, onde figuram simultaneamente todas as frequências:

1-30 1-18 Ruído branco

A música eletrônica herdou esta tradição e propõe, muitas vezes, a combinação de sons puros ou a decupagem de fatias dos sons brancos. Se decuparmos, por filtragem num som branco, fatias de uma certa espessura, com estas fatias ocupando diferentes espaços na tessitura, elas sucedem-se de maneira análoga à das notas de uma melodia:

1-31 1-19 Sucessão “melódica” de fatias de ruído branco

Por outro lado, se aceleramos ou desacelerarmos a velocidade de uma gravação de um som branco, não obtemos nenhuma variação, pois as suas frequências não são diferentes:

1-32 1-20 Ruído branco lido em duas velocidades diferentes (19 e 38 cm/s) 7½” e 15”

As mesmas manipulações aplicadas a sons estruturados dão resultados inversos. Estes objetos comportam-se como havíamos mostrado anteriormente (nos exemplos 23, 24 etc.): são quase indestrutíveis. Sejam eles sons tônicos ou complexos, apresentem um espectro harmônico ou vários espectros imbricados, eles são indiferentes às filtragens graves e modificam o timbre quando filtrados no registro médio, mas jamais evoluem melodicamente como os sons brancos, por meio de filtragens passa-banda.

Sobre este som:

1-33 1-21 Som complexo estruturado

realizamos uma decupagem aos mesmos intervalos que no som branco precedente e temos isto:

1-34 1-22 Mesmo som do exemplo 33 do tópico 1-21, filtrado como no exemplo 31 do tópico 1-19

O timbre certamente se altera, mas há qualquer coisa que permanece, que não evolui na tessitura. Se aplicarmos aqui a regra linguística de Jakobson, que nos permite definir o termo de um código, descobriremos a “massa”, esta estrutura harmônica que não muda no objeto.

A massa de certos sons complexos, por vezes semelhante à massa dos sons tônicos, comporta-se como eles, não resistindo a nenhuma das duas manipulações que já apresentamos. Quanto ao som que resistia às filtragens, este será dócil à variação de velocidade:

1-35 1-23 Som do exemplo 33 do tópico 1-21 transposto sobre as “notas” da melodia 31 do tópico 1-19

Assim se evidencia uma nova noção musical, tão importante quanto a noção de altura: a de massa de um som.

Seja ela tônica ou complexa, pontual ou difusa, correlacionada a um espectro harmônico ou imbricada, formada por apenas um feixe ou por uma infinidade de frequências, a massa é uma percepção musical que considera a estrutura harmônica de um objeto. Um solfejo realista, aberto a qualquer objeto musical, deve fundamentar-se sobre uma relação autêntica entre observador e observado. As estruturas de referência do nosso ouvido são função da massa do objeto que lhe é dado a ouvir. Até agora dissemos o essencial. Não duvidamos que ideias tão fundamentais necessitem de um maior desenvolvimento.

Segundo tema de reflexões: Duração e informação

1-36 2-0

Confrontemos agora o tempo medido pelos cronômetros e a duração dos objetos musicais. Diga-se de passagem que, se o solfejo ensina que todas as mínimas são iguais, os compositores preocupam-se com o conteúdo e fazem uma distinção entre as diferentes maneiras de preencher os espaços, por exemplo:

1-37 2-1 Sons de tímpano, violino, piano e órgão igualmente espaçados

Observemos a influência da informação sobre a duração:

1-38 2-2 Glissando vocal

Musicalmente este objeto é bastante equilibrado. Porém, as proporções métricas de suas três partes são, na realidade, as seguintes: o glissando corresponde a um terço da fermata (nota final), que por sua vez corresponde a um terço do tenuto (nota sustentada inicial).

Acrescentemos que a memória musical não retém somente as proporções do tempo de escuta, mas também a importância daquilo que se ouviu.

1-39 2-3 Sequência de duas células musicais, uma variada e curta, outra uniforme e longa

Tomemos exemplos ainda mais simples: um som assimétrico é constituído por uma parte de sustentação e outra de ressonância:

1-40 2-4 Primeiro som assimétrico

É claro que a fase de sustentação é consideravelmente mais curta que a fase de ressonância.

1-41 2-5 Segundo som assimétrico

Quem diria que agora a ressonância foi vinte vezes mais curta?

Um grupo de ouvintes considerou bem equilibrada a relação entre as fases de sustentação e ressonância nos dois sons que se seguem:

1-42 2-6 Terceiro e quarto sons assimétricos

De fato, a fase de sustentação era três vezes mais curta que a de ressonância.

Esta apreciação é evidentemente frágil e depende de um maior grau de atenção do ouvinte. Uma escuta menos espontânea poderá ser mais métrica que musical, sobretudo se ralentarmos o som:

1-43 2-7 Segundo som do exemplo 42 do tópico 2-6 reproduzido à metade da velocidade

Sabe-se também que o tempo musical não é reversível: a percepção temporal varia radicalmente se passarmos de uma causalidade explicada desde o princípio a uma causalidade colocada ao final, sendo esperada como o culminar de um suspense. Escutemos os sete sons assimétricos que figuram no capitulo XIV do Tratado dos objetos musicais:

1-44 2-8 Os sete sons assimétricos do Capítulo 14-3 do Traité des Objets Musicaux

Toquemos agora estes sons de trás para a frente. As proporções de cada um deles serão modificadas e ainda surgirá uma continuidade de um som para o seguinte, inexistente para a nossa percepção na versão original, lógica demais:

1-45 2-9 Os sete sons assimétricos invertidos

Por fim, devemos insistir nestes elementos ativos da memorização. Em objetos como estes:

1-46 2-10 Três objetos com inícios característicos

a informação característica está contida em um ou dois décimos iniciais de suas durações métricas. Eis estes inícios significativos:

1-47 2-11 Porções iniciais dos objetos do exemplo 46, tópico 2-10

Privadas destes elementos, as porções finais, muito mais importantes temporalmente, ficam irreconhecíveis:

1-48 2-12 Porções finais dos objetos do exemplo 46, tópico 2-10

Conclusão: no que diz respeito ao valor das figuras de notas, as regras de solfejo aplicam-se unicamente à região privilegiada dos sons sustentados e homogêneos. Os elementos da forma ou de informação perturbam consideravelmente os seus valores métricos. Estaríamos errados se nos fiássemos nos cronômetros e réguas, pois não há garantias de que uma esquematização precisa e bem calculada se configure como uma partitura científica. Se existe uma máquina de calcular para calibrar a música, trata-se da que nós já possuímos, que é prodigiosa, portátil e econômica: senhoras e senhores, é o nosso ouvido.

Terceiro tema de reflexões: Os limites temporais do ouvido

1-49 3-1-0

Assim, o ouvido conhece razões que a física desconhece. Ocupemo-nos um pouco deste ouvido... Penetremos em seu domínio por um limiar, abaixo do qual os objetos se tornam imperceptíveis. Vamos começar observando como uma percepção do quantitativo se transforma em percepção do qualitativo.

Primeira ideia: Passamos, de forma contínua, de percepções rítmicas a percepções de altura

Eis, isolado, o mais simples dos impulsos sonoros:

1-50 3-1-1 Impulso eletrônico

Eis o mesmo som repetido em oito fusas, num tempo lento em que a semínima é igualada a um segundo:

1-51 3-1-2 Oito impulsos por segundo

Agora em tercinas de fusas, formando doze impulsos por segundo:

1-52 3-1-3 Doze impulsos por segundo

Agora em dezesseis semifusas:

1-53 3-1-4 Dezesseis impulsos por segundo

E em quiálteras de 24 semifusas por segundo, ainda identificáveis pelo ouvido, mas de execução impossível para qualquer instrumento:

1-54 3-1-5 Vinte e quatro impulsos por segundo

Entre estes 24 impulsos por segundo que acabamos de ouvir e os 29 que ouviremos a seguir, surge-nos uma nova percepção, que não se deve ao fenômeno observado, mas sim a uma propriedade específica do nosso ouvido:

1-55 3-1-6 Si bemol 29 Hz

Este Si bemol seria bem pouco reconhecível, se não fosse confirmado pelo Mi seguinte:

1-56 3-1-7 Mi 41 Hz

Saudemos este obscuro nascimento, esta mutação de percepção rítmica em percepção de altura, que parece não preocupar ninguém. Eis agora o Dó sustenido 69 Hz:

1-57 3-1-8 Dó Dó sustenido 69 Hz

Aqui a percepção de altura afirma-se, sem que no entanto desapareça completamente a percepção rítmica, deixando marcas a que chamaremos grão do som.

1-58 3-1-9 Sol 98 Hz

Após este Sol2, eis um Fá3 e um Dó4. Os grãos se juntam para formar uma matéria que qualificaremos de mais ou menos rugosa:

1-59 3-1-10 Fá 174 Hz, Dó 261 Hz

Esta é a experiência musical mais elementar e também a mais misteriosa. Não nos surpreendamos se ouvirmos eventualmente outras alturas para além das mencionadas, devido ao espectro subentendido em cada impulso. Depois de realizar esta experiência com um impulso eletrônico, podemos repeti-la com um som acústico, um impulso retirado de um som de fagote. Aumentemos cinco vezes um grão retirado de um Mi grave:

1-60 3-1-11 Impulso retirado do Mi grave do fagote

Multiplicando a frequência deste impulso, poderemos ilustrar novamente a fusão gradual que vai do impacto à altura, e percorrer a tessitura acenando, de passagem, para o Mi original do fagote:

1-61 3-1-12 A partir do impulso precedente, a mesma progressão como nos exemplos 51 a 59, tópicos 31-2 a 31-10

A repetição destes impulsos, isto é, a frequência, produz em nosso ouvido três tipos de efeito que se fundem: as sequências de impactos rímicos regulares vão sendo percebidas como os chamados grãos que, por sua vez, trazem um crescente efeito de altura e, finalmente, colorindo esta altura, emerge uma matéria. São muitas qualidades, e bem sutis, para a simples progressão de um só parâmetro. Podemos então afirmar que, no homem, o mesmo gênero de causas não produz o mesmo gênero de efeitos:

Segunda ideia: A capacidade de separação do ouvido

Há um limite para a acumulação de objetos no tempo pelo nosso ouvido, e a música tradicional afirmou-o na prática, limitando a brevidade das durações das notas à semifusa:

1-62 3-2-1 Escala descendente na qual cada nota dura em média 60 milésimos de segundo (ms)

Coincidentemente, os limites psicofisiológicos são os mesmos, tanto para quem “faz” quanto para quem “ouve”. Para executar quartifusas, o pianista aqui teve que ser ajudado pelo gravador, que acelerou sua execução:

1-63 3-2-2 Escala descendente duas vezes mais rápido, na qual cada nota dura em média 30 ms

O ouvido distingue ainda as notas de uma escala à qual está habituado, mas ele funde estas notas, como o fez para os grãos do fagote. Num texto musical menos familiar, os sons interpenetram-se logo que as suas durações passam das semifusas...

1-64 3-2-3 Sons desordenados em semifusas

para as quartifusas:

1-65 3-2-4 Sons desordenados em semifusas, do Exemplo 64, tópico 3-2-3, duas vezes mais rápido

Nos dois exemplos precedentes, ultrapassamos a fronteira dos 50 ms, ou 1/20 de segundo, que delimita a capacidade de separação do ouvido. A mesma fronteira é ainda mais rigorosa para as palavras:

1-66 3-2-5 Frase cujas sílabas duram em média 40 ms

A duração média dessas silabas é de 40 ms. E o sentido tornou-se ininteligível. Retomando-se a frase num ritmo intermediário entre fusas e semifusas, ela se torna um pouco mais clara:

1-67 3-2-6 Mesma frase, com cada sílaba a 80 ms, em média (“Um pesquisador nunca deve prejulgar futuras descobertas”)

Terceira ideia: Constante de tempo do ouvido

Deveremos fazer uma distinção entre a capacidade de separação do ouvido - no que se refere à sua capacidade de separar os objetos - e a constante de tempo deste órgão, isto é, a menor fração temporal abaixo da qual só se ouve ruído branco, devido à dispersão do espectro no aparelho auditivo, independentemente da natureza dos estímulos. Este limite é muito mais estreito, dez vezes mais curto que a capacidade de separação. Passa-se de 50 ms para 5 ms (ou seja, de 1/20 de segundo para 1/200 de segundo).

Quaisquer que sejam as durações da aparição da energia entre 0 e 5 ms, o ouvido perceberá o mesmo ruído parasita, devido ao próprio aparelho auditivo. É este pseudo-ataque que evidencia, como veremos mais adiante, a incidência de cortes em ângulo reto feitos na fita magnética. Pouco importa a natureza do som gravado: a irrupção súbita do som, nos cinco primeiros milissegundos, provoca no ouvido apenas uma minúscula explosão:

1-68 3-3-1 “Clique” de 5 ms

Cortes oblíquos na fita magnética permitem que a energia surja gradualmente, eliminando o “clique” habitual. Vamos comparar um corte em ângulo reto e, sobre este mesmo som, cortes oblíquos de 10, 20 e 60 ms, cada vez mais suaves:

1-69 3-3-2 Diferentes ataques obtidos artificialmente por meio de cortes de tesoura sobre um som puro: ataque nítido por corte da fita em ângulo reto, depois ataques cada vez mais suaves por meio de cortes oblíquos sobre 10, 20 e 60 ms

Quarta ideia: Limiar de reconhecimento de alturas e timbres

Vimos que um objeto, mesmo sendo curto demais para poder ser separado de um outro, pode ser apreciado pelo ouvido em algumas de suas qualidades. A qualidade que mais resiste à atomização de um som é, sem dúvida, a altura. A que menos resiste é o timbre.

Escutando 4 séries de 6 fragmentos muito breves, de 3, 5, 10, 25, 50 e 250 ms, seguidos do som original, poderemos observar a que momento reconhecemos as alturas, depois a cor e finalmente os instrumentos, que podem ser os mais diversos:

1-70 3-4-1 Quatro séries de exemplos, com Sol5 e Ré4 de trompete, e Ré3 e Si 5 Si bemol 5 de clarinete

Interroguemo-nos agora sobre os limites de reconhecimento do timbre, apesar da ambiguidade inerente à palavra “timbre”. Podemos dizer que em sons curtos de 50 ms é possível ouvir outras qualidades além da altura...

1-71 3-4-2 Fragmentos de 50 ms extraídos do corpo de três sons: trompete, oboé e violino

e isto fica ainda mais claro com fragmentos de 100 ms:

1-72 3-4-3 Idem, a 100 ms

Se o reconhecimento da fonte sonora instrumental ainda não está assegurado, é porque fizemos cortes na porção central do corpo dos sons. Mas quando estes cortes são feitos no início dos sons, tornam-se mais significativos, mesmo se forem reduzidos a apenas 50 ms:

1-73 3-4-4 Fragmentos de 50 ms extraídos do início dos mesmos sons de trompete, oboé e violino

Se aumentarmos estes fragmentos para 100 ms, estes cortes feitos no início dos sons ficam um pouco mais explícitos:

1-74 3-4-5 Idem, a 100 ms

Mas só ficamos satisfeitos ao ouvir, na íntegra, os sons originais de um trompete, de um oboé e de um violino:

1-75 3-4-6 Sons originais de trompete, oboé e violino

Portanto, não seria razoável tentarmos apreciar quantitativamente os limites de reconhecimento de timbres instrumentais, os quais dependem essencialmente da forma dos objetos, conforme veremos adiante.

Em compensação, a qualidade de altura resiste teimosamente a esta brevidade. Se, por um lado, não existe mais melodia abaixo de 5 ms...

1-76 3-4-7 Melodia “subliminar”: cada som dura menos de 5 ms

quando juntamos fragmentos de 10 ms, ou seja, de 1/100 de segundo, as relações de altura ressurgem:

1-77 3-4-8 Mesma melodia, com cada nota durando 10 ms

Quinta ideia: Estrutura dos sons breves

As experiências precedentes só serão válidas se os sons breves forem isolados e envoltos em silêncio. Os mesmos sons breves, se integrados a uma estrutura, serão em geral absorvidos ou desqualificados por essa mesma estrutura. A demonstração seguinte pode ser generalizada a todo o fenômeno musical; não é possível prever qual será a percepção de um conjunto de objetos conhecendo-se apenas a percepção de cada componente individual.

Em um som muito tradicional, de violino..

1-78 3-5-1 Som de violino

introduzimos 4 sons breves, que a partir de agora serão ouvidos como incidentes, ou ruídos, sem valor musical:

1-79 3-5-2 Exemplo 78 do tópico 3-5-1 com quatro incidentes

Aumentemos a intensidade destes incidentes: o som do violino encontra-se ainda mais perturbado, sem que por isso se possa, no entanto, qualificar melhor os incidentes:

1-80 3-5-3 Exemplo 79 do tópico 3-5-2, com incidentes mais fortes

No entanto, se tomarmos estes incidentes isoladamente, conseguimos discriminar as suas alturas, apesar da sua curta duração de 10 ms, ou 1/100 de segundo...

1-81 3-5-4 Os quatro incidentes isolados

mesmo que não nos permitam reconhecer seus timbres originais:

1-82 3-5-5 Sons de onde foram extraídos os incidentes precedentes

A incidência de estruturas sobre os objetos sonoros vai aparecer ainda mais claramente se integrarmos esses sons breves num objeto menos simples que o precedente som de violino. Eis aqui uma sequência complexa:

1-83 3-5-6 Sequência de objetos acumulados, extraída de I’Objet captif, de François Bayle

E eis agora a mesma sequência, no interior da qual são introduzidos três incidentes sonoros breves:

1-84 3-5-7 Mesma sequência com três incidentes

Eles foram totalmente absorvidos ou destruídos. Ouçamos, então, esses três incidentes sonoros isoladamente:

1-85 3-5-8 Incidentes isolados do exemplo 84, tópico 3-5-7

Antes de encerrar essas considerações sobre os sons breves, é preciso deixar claro que eles não podem constituir os dados elementares de uma síntese, dados que são referidos por uns como sendo “unidades de percepção”, e por outros como “elementos diferenciais”. Ouçamos isto:

1-86 3-5-9 Fragmentos sonoros de 50 ms colados (provenientes de oboé e trompete)

Estes foram dois fragmentos colados, de 50 ms cada um, que agora ouviremos separadamente:

1-87 3-5-10 Fragmentos separados do exemplo 86, tópico 3-5-9

A dificuldade é a mesma para estes dois outros fragmentos, também montados por colagem...

1-88 3-5-11 Dois outros fragmentos colados (provenientes de violino e oboé)

que, separados, são assim:

1-89 3-5-12 Fragmentos separados do exemplo 88, tópico 3-5-11

Tratavam-se de timbres diferentes e da mesma altura. Se variarmos a altura, faremos recuar, obviamente, o limite de fusão de objetos. Contudo, abaixo de 6 ms, fragmentos de alturas diferentes fundem-se:

1-90 3-5-13 Dois fragmentos colados, inferiores a 6 ms (oboé, violino)

A partir de 10 ms, 25 ms, eles já formam uma estrutura melódica:

1-91 3-5-14 Como no exemplo 90, tópico 3-5-13, com fragmentos de 10 ms cada, e depois de 25 ms

Mas é preciso que renunciemos a ter, a partir de sons tão curtos, qualquer informação sobre a cor ou o timbre que remeta, seja como for, aos objetos originais.

1-92, 3-5-15 Sons de onde foram extraídos os fragmentos precedentes (oboé e violino)

Conclusão: partituras musicais não podem ser justificadas recorrendo-se aos limites quantitativos e às unidades de percepção. O ouvido integrará este pontilhismo, tornando irrisório esse falso rigor. Também para os sons se aplica a lei da selva: os pequenos são devorados pelos grandes.

Quarto tema de reflexões: As anamorfoses temporais

2-01 4-1-0

O tempo não é somente qualificado em duração musical, ele é passível de ser deformado, “anamorfoseado” pelo ouvido, assim como as dimensões de um espaço são anamorfoseadas por um espelho deformador.

Primeira ideia: Paradoxo do ataque

Sem mais delongas, tomemos consciência de um estranho fenômeno, que até aqui passou despercebido:

2-02 4-1-1 Nota grave de piano

Eis a interpretação do senso comum: no início do som, um ataque, devido a uma percussão visível a olho nu, seguido de sua ressonância. De tesoura em punho, vamos cortar da fita magnética a porção inicial dando-nos uma larga margem de segurança. Cortemos não os primeiros milisegundos dos fenômenos transitórios iniciais, mas sim cem vezes mais: um segundo inteiro, por exemplo. Ouçamos o que sobrou:

2-03 4-1-2 exemplo 02, tópico 4-1-1, sem o início

Misteriosamente idêntica à nota original, esta porção de nota com seu início cortado apresenta ao ouvido exatamente as mesmas características de ataque. Ora essa! O martelo não tinha percutido a corda um segundo antes? Por meio de que passe de mágica voltamos a ouvi-lo?

Outra experiência:

2-04 4-1-3 Som de sino

Amputemos este som do seu ataque e também de uma grande porção do que se segue. Será que reencontraremos o mesmo fenômeno? É melhor não ousar fazer mais prognósticos:

2-05 4-1-4 Exemplo 04 do tópico 4-1-3, sem o início

Aqui, tudo se passou normalmente: conseguiu-se isolar temporalmente, senão todo o ataque (pois resta um ataque secundário, um pseudo-ataque), pelo menos a parte mais visível deste:

2-06 4-1-5 Início do exemplo 04 do tópico 4-1-3

Este foi o som do ataque localizado no instante inicial, correspondendo com realismo ao instante onde o badalo toca o sino. Vamos repetir a experiência com um prato percutido por uma baqueta forrada de feltro: escutemos primeiro o som original, depois a cópia sem o seu início:

2-07 4-1-6 Som de prato, depois sua cópia sem o início

Desta vez, não há nenhuma diferença entre os dois. Agora ficamos desorientados.

Entretanto, uma fé elementar nos faz crer que, para o ouvido, o ataque coincide com o instante da percussão física. Nós mesmos temos sido prisioneiros dessa crença há anos. Então, tentemos comparar as características de ataque de duas notas de violino, isolando os primeiros 50 milisegundos. Eis duas notas Mi de violino na corda solta:

2-08 4-1-7 Duas notas Mi de violino

E eis os primeiros 50 ms de cada um dos seus ataques:

2-09 4-1-8 Os primeiros 50 ms dos dois sons do exemplo 08, tópico 4-1-7

Como estas porções iniciais são muito semelhantes, procuramos visualizá-las no osciloscópio, em busca de traços comparáveis. Mas não os encontramos. Então recomeçamos as mesmas experiências sobre as oito porções iniciais de um staccato de trompete:

2-10 4-1-9 Staccato de trompete

Os oscilogramas que figuram no capítulo XII do Tratado dos Objetos Musicais são visualmente muito diferentes entre si, enquanto que os oito ataques ouvidos não são assim tão diferentes musicalmente. O que podemos concluir de traçados tão caprichosos? Se o osciloscópio está ultrapassado, apelaremos ao computador para realizar uma análise mais refinada do sistema complexo das vibrações transitórias? Isto seria excessivamente luxuoso apenas para determinar as características musicais destes ataques, relativamente equivalentes. Uma chave para estas correspondências, muito mais simples, talvez possa ser encontrada em algum outro lugar, talvez possa estar muito além dos instantes iniciais. Em outras palavras, os instantes da nossa escuta não coincidem com os centímetros da fita magnética.

Segunda ideia: Ataques e dinâmica

Formulemos então uma hipótese: que a percepção do ataque está ligada à forma geral dos sons. Ou seja, que o ataque é função da curva dinâmica. Vamos retomar a nossa nota grave original de piano e cortá-la depois de um décimo de segundo, um segundo e um segundo e meio:

2-11 4-2-1 Nota grave de piano, depois a mesma após a supressão de 0.1, 1.0 e 1.5 segundos do seu início

Nenhuma diferença apreciável nos ataques. Façamos o mesmo com um Lá do diapasão tocado em um piano medíocre.

Eis este Lá, seguido de suas cópias, respectivamente cortadas nos mesmos lugares.

2-12 4-2-2 Idem para o Lá do diapasão

As anamorfoses do piano grave e as do Lá do diapasão não dão os mesmo resultados. Por que? É aqui que a experiência auditiva deve ser confrontada com observações físicas, sendo este o único meio de estabelecer correlações entre estas duas espécies de fenômenos.

Notemos que a dinâmica da nota grave de piano é sensivelmente retilínea e que apresenta em toda a sua extensão sempre a mesma inclinação - como podemos nos assegurar consultando a figura 6 no Tratado dos Objetos Musicais. Por outro lado, para o Lá do diapasão, esta inclinação só é regular durante os primeiros instantes: ao final de um segundo, ela se achata, em seguida forma uma depressão e, por fim, apresenta um novo pico no segundo seguinte.

Então, não será surpresa que o primeiro corte, após 1/10 de segundo, restitua sensivelmente o mesmo ataque, que o segundo corte resulte num ataque atenuado e que o terceiro corte, realizado na depressão dinâmica, pouco antes do pico seguinte, transforme de forma bizarra esta nota de piano num som flautado. Ouçamos novamente estes três cortes:

2-13 4-2-3 Os três sons amputados do exemplo 12, tópico 4-2-2

A diversidade dos ataques está, então, associada às irregularidades da curva dinâmica. A acentuação dos ataques será parcialmente proporcional à inclinação da curva dinâmica no local de corte. Logicamente, teremos sempre o mesmo ataque nos sons de dinâmica retilínea, independentemente do local de corte. Façamos a prova, cortando um som sustentado de trompete, de cuja porção inicial retiramos meio segundo, depois um segundo, um segundo e meio, e finalmente dois segundos.

2-14 4-2-4 Som sustentado de trompete, depois o mesmo após supressão de 0.5, 1.0, 1.5 e 2 segundos iniciais

Terceira ideia: Timbre de ataque e sons duplos

Ao estabelecer essa ligação das percepções de ataque às inclinações das curvas dinâmicas e às irregularidades de seu traçado explicamos uma parte de nossos paradoxos, mas não todos, pois alguns inícios de sons, por exemplo o do sino, são modificados por um corte, enquanto que percussões como os pratos não são afetadas.

Ao invés de um sino, cuja curva dinâmica é caprichosa, experimentemos com uma nota de vibrafone, cuja dinâmica tem uma inclinação rigorosamente constante. A diferença entre prato e vibrafone já não se explica mais pela “inclinação”, e sim por uma outra característica do ataque: a “cor”.

Eis o vibrafone original, seguido de suas cópias com inícios suprimidos após 1/10 de segundo, 1/2 e 1 segundo:

2-15 4-3-1 Nota de vibrafone original, seguida de cópias da mesma após supressão de 0.1, 0.5 e 1.0 segundos iniciais do som

Note-se que ocorre uma mudança no primeiro corte do som de vibrafone, mudança que se observa também em todos os cortes subsequentes. A explicação é simples: é que o prato, ao ser percutido por uma baqueta forrada de feltro, semelhante ao martelo do piano, não produz um “som duplo”, tal como é o do vibrafone.

Mas, por que duplo? Dizemos duplo porque se compõe de um choque metálico muito breve e de uma ressonância tornada linear pela construção deste instrumento. Ouviremos melhor essa característica dupla do som de vibrafone se o confrontarmos com sons de piano, vibrafone e prato reproduzidos de trás para a frente. Nos três casos, a interrupção brusca das curvas dinâmicas, agora em crescendo, cria para o ouvido uma perturbação, uma espécie de ruído, mas o vibrafone ainda acrescenta na sua porção final (no ataque invertido) um efeito adicional, uma cor específica produzida pelo impacto: esta cor do ataque, complemento de sua inclinação, é aqui colocada em evidência:

2-16 4-3-2 Três sons reproduzidos de trás para a frente (piano, vibrafone e prato)

Quinto tema de reflexões: Ataques artificiais e características secundárias de ataque nos sons sustentados

2-17 5-1-0

Nos exemplos precedentes, ocupamo-nos de uma morfologia sonora bem particular, a dos sons de percussão-ressonância, para os quais o ataque é uma característica primordial. O que acontece no caso dos sons sustentados, para os quais o ataque não é mais que uma característica secundária?

Comparemos um Mi de flauta com a sua cópia, da qual foram suprimidos os primeiros 50 ms:

2-18 5-1-1 Mi de flauta seguido da sua cópia sem os 50 ms iniciais

Percebemos aqui uma diferença mais sutil que nos fenômenos precedentes, e que provém das particularidades dos mecanismos instrumentais: os primeiros 50 ms fornecem uma espécie de ruído, um pequeno objeto preliminar que não é outra coisa senão o índice de causalidade da irrupção do sopro dentro do instrumento.

Outro exemplo ainda mais convincente: um Ré da mesma flauta, amputado dos 50 ms iniciais, é limpo do chiado que encontramos no original:

2-19 5-1-2 Idem, Ré (som cortado no início, original em seguida)

Ora, se fizermos esta mesma experiência com o trompete, não teremos estas diferenças sutis. Isto deve-se ao fato do trompete ter um ataque nítido, cujo impacto no ouvido é, em todos os seus aspectos, semelhante a um corte de tesoura em ângulo reto numa fita magnética. Mas se, pelo contrário, cortarmos um som de trompete obliquamente, o seu ataque é atenuado.

Ouçamos este ataque artificial, seguido do ataque original:

2-20 5-1-3 Som de trompete com ataque artificial “oblíquo” (corte de fita oblíquo) seguido do seu original

É preciso admitir que a inclinação do corte de tesoura sobre a fita é um fator importante, e que mesmo o corte dito normal, em ângulo reto, provavelmente também possui as suas características próprias.

Efetivamente, iremos constatar que um som de violino com um corte em ângulo reto a 50 ms do início difere do original, cujo ataque é atenuado pela progressão do arco:

2-21 5-1-4 Som de violino com ataque artificial “reto” (corte em ângulo reto), seguido do som original

Seria possível recuperar a atenuação do ataque original se, neste mesmo som comprometido pelo ataque reto, fizéssemos um novo ataque, mas de corte inclinado? Sem dúvida, especialmente porque um leve vibrato no som torna o nosso ouvido mais indulgente.

Iremos ouvir, respectivamente para a flauta e o violino, um som original, seguido de um corte reto e depois um corte oblíquo que restituirá sensivelmente o ataque original:

2-22 5-1-5 Nota original; ataque artificial por corte reto; ataque artificial por corte oblíquo: em um Dó5 de flauta, seguido de um Si 4 de violino

Vejamos, enfim, dois exemplos de clarinete, como prova de nossa habilidade. Cortes oblíquos artificiais ligam as notas da primeira escala, enquanto na segunda elas são ligadas naturalmente pelo instrumentista:

2-23 5-1-6 Dois sons cromáticos descendentes de clarinete: com ataques artificiais (cortes em oblíquo), seguido dos sons originais

Resta-nos esclarecer um último ponto: os cortes que fizemos anteriormente nas fitas teriam afetado os fenômenos de primeira ordem? Asseguremo-nos comparando dois cortes em uma mesma nota de piano, um reto e um oblíquo, realizados após um segundo de seu início:

2-24 5-1-7 Nota grave de piano, amputada do seu segundo inicial por um corte reto, depois por um oblíquo

Última ideia: Transmutações instrumentais

Se a percepção dos ataques e das dinâmicas se encontram estreitamente ligadas, constituindo em grande parte a percepção de timbres, então deve ser possível passar de um instrumento a outro, como nos revelaram, de forma tão curiosa, os cortes de piano sobre o Lá4.

Verifiquemos com dois sons: um provém de um piano, cortado de maneira criteriosa e sem nenhuma filtragem; o outro é um Mi5 de flauta:

2-25 5-2-1 Mi5 de piano com ataque artificial, seguido de Mi5 de flauta

Agora o inverso: emprestemos ao som de flauta uma curva dinâmica inclinada análoga à de um piano, procedimento possível graças a um modulador de envelope. Comparemos esta flauta manipulada com o seu original:

2-26 5-2-2 Fá5 de flauta com forma artificial, seguido de Fá5 de piano

Estas experiências são muito mais que passatempos divertidos de física; esta audição de ilusionista abre-nos as cortinas para a noção de timbre - a mais vaga e contraditória dentre todas as noções musicais.

Ora, por um caminho bizarro, e como que por um espírito de contradição, concluímos que altura e ritmo estão relacionados, que tempo não é o mesmo que duração, e que o ataque é distinto do instante inicial de um som. E agora, a estrutura dinâmica (a que os músicos chamam de nuance e os físicos, de nível) arrisca-se a tornar-se um dos fatores do timbre, segredo da matéria sonora.

Sexto tema de reflexões: Timbre dos sons e noção de instrumento musical

2-27 6-1-0

Primeira ideia: O enigma do timbre

Vamos lhes propor uma charada ou, sem querer ofender, uma armadilha: de que estranho instrumento provêm os seguintes sons?

2-28 6-1-1 Oito sons do “estranho instrumento”

No máximo, poderíamos crer numa fonte única. Somente um ouvido experiente e atento pode descobrir a fraude: remodelamos a dinâmica de diversos sons instrumentais, respeitando escrupulosamente o timbre harmônico original. Eis estes timbres desmascarados:

2-29 6-1-2 Os oito sons originais

Foram sucessivamente: flauta e fagote, flauta e clarinete, um Lá eletrônico, oboé, trompete e um Dó eletrônico.

Conclusão: ao contrário do que geralmente se professa, a matéria harmônica não é o único critério do timbre instrumental; muitas vezes, a forma dinâmica é ainda mais característica. Vejamos isto de mais perto, retomando o exercício precedente, a que chamamos de “transmutação instrumental”. Sabemos fabricar um som similar a um Sol4 de piano, ou pelo menos com o mesmo perfil dinâmico:

2-30 6-1-3 Sol4 sintético de piano

A matéria deste som foi extraída de uma fonte eletrônica. É um som puro, homogêneo e sem forma...

2-31 6-1-4 Som puro (Sol4)

ao qual foi imposto um perfil dinâmico retirado da mesma nota de piano:

2-32 6-1-5 Sol4 de piano

Ouçam nossa imitação mais uma vez:

2-33 6-1-6 Som do exemplo 30, tópico 6-1-3

Notem que esta nossa imitação difere do original pelo seu “timbre harmônico”, que não deve ser confundido com o timbre propriamente dito, do qual é apenas um dos componentes.

Procuremos agora um material harmônico que seja próximo do timbre harmônico do piano no registro médio. Descobrimos que é o caso da flauta. Vamos, então, modelar um som de flauta, como este...

2-34 6-1-7 Fá5 de flauta

a partir do perfil dinâmico da nota de piano correspondente...

2-35 6-1-8 Fá5 de piano

para obter este híbrido:

2-36 6-1-9 Som sintético (Fá5)

Desta vez bem próximo de seu original:

2-37 6-1-10 Som de piano original correspondente

Segunda ideia: Os 2 critérios do timbre: dinâmico e harmônico

Desenvolvemos os exemplos precedentes para demonstrar que uma análise, mesmo sumária, do timbre instrumental em seus componentes dinâmico e harmônico, permite sínteses divertidas. Eis uma sequência curta de cravo, em parte verdadeira, em parte falsa:

2-38 6-2-1 Sequência de cravo

São o começo e o fim que provêm de um cravo autêntico:

2-39 6-2-2 Começo e fim do exemplo 38, tópico 6-2-1

e é a parte central que é obtida por síntese:

2-40 6-2-3 Parte central do exemplo 38, tópico 6-2-1

Como são obtidas estas notas sintéticas? Partimos da premissa de que o som do cravo difere do som do piano por um timbre harmônico mais rico e por um perfil dinâmico mais pronunciado. Escolhemos, então, extrair a matéria harmônica destas notas sintéticas dos sons de oboé, mais ricos que os de flauta, e moldamos os perfis destas notas aplicando-lhes as curvas dinâmicas do piano tomadas em um registro mais agudo. Assim, para obter esta nota de falso cravo:

2-41 6-2-4 Nota sintética de cravo (Ré4)

escolhemos um som de oboé na mesma altura:

2-42 6-2-5 Ré4 de oboé

e o modelamos a partir da dinâmica de uma nota de piano mais aguda:

2-43 6-2-6 Dó#6 de piano

Eis o resultado:

2-44 6-2-7 Som do exemplo 41, tópico 6-2-4

Terceira ideia: Timbre de um instrumento: o caso do piano

Como poderemos falar do timbre de um instrumento, se cada uma de suas notas possui um timbre próprio? Obviamente, este termo pode ter acepções distintas. A referência a um timbre por todo o registro de um instrumento é, de fato, uma referência empírica. Haveria, então, alguma regra geral de agrupamento das notas individuais de um registro para justificar assim a noção de timbre instrumental? Estudemos o caso do piano, comparando suas diferentes notas, primeiramente sob o plano da curva dinâmica.

Mesmo que tentemos igualar, de maneira aproximada, a duração das notas utilizando os abafadores do piano, ainda assim as inclinações dinâmicas vão se tornando cada vez mais íngremes. Vamos percorrer, de terça em terça maior, todo o registro do piano, comparando as inclinações de seus perfis dinâmicos:

2-45 6-3-1 22 notas sobre as sete oitavas do piano (fig. 13 do Traité)

Após os critérios dinâmicos, passemos aos critérios harmônicos. Quais são as suas variações em função do registro? Para constatá-las, façamos a transposição, no gravador, de um Ré grave, duas oitavas acima, e comparemos este som com o som natural do piano sobre a mesma nota. Eis o Ré grave:

2-46 6-3-2 Ré2 de piano

E agora, este Ré transposto duas oitavas acima, seguido do som de piano à mesma altura:

2-47 6-3-3 Exemplo 46 do tópico 6-3-2, transposto duas oitavas acima, depois a mesma nota (Ré4) no piano

Fica evidente que o timbre harmônico do Ré grave - cujo conteúdo não foi modificado, já que todo o espectro foi transferido para duas oitavas acima - é muito mais rico que o som natural. Façamos a experiência simétrica, partindo de um Ré agudo:

2-48 6-3-4 Ré6 de piano

Agora vamos transpor o Ré, sem modificá-lo, duas oitavas abaixo, graças a uma redução de velocidade no gravador. O espectro é evidentemente mais pobre que o da nota de piano original na mesma altura:

2-49 6-3-5 Exemplo 48 do tópico 6-3-4, transposto duas oitavas abaixo, depois a mesma nota (Ré4) no piano

A conclusão é óbvia, mesmo que paradoxal: o timbre harmônico do piano é não somente mais rico, mas também mais claro no registro grave, e é mais pobre e mais escuro no registro agudo. Confirmemos esta constatação repetindo a mesma experiência com um grupo melódico; eis aqui a melodia original:

2-50 6-3-6 Melodia ao piano

Duas oitavas acima, o seu timbre é mais rico que as notas de mesma altura:

2-51 6-3-7 Exemplo 50 do tópico 6-3-6, transposto duas oitavas acima à velocidade maior no gravador, depois tocado ao piano

Duas oitavas abaixo, o timbre é menos rico que as notas naturais de mesma altura:

2-52 6-3-8 Idem, duas oitavas abaixo

Quarta ideia: A lei do piano

Podemos então dizer que o piano é governado por uma lei de compensação entre timbre harmônico e timbre dinâmico: se, do grave ao agudo, a inclinação da curva dinâmica cresce constantemente, a riqueza harmônica decresce na mesma proporção.

Podemos verificar esta hipótese tomando do próprio piano os seus elementos de síntese. Se tocarmos com um plectro uma nota do registro médio, um Dó3 por exemplo, obteremos um som ao mesmo tempo mais rico em harmônicos e mais abrupto que o original:

2-53 6-4-1 Do3 de piano tocado com plectro

Transposto uma oitava abaixo, ele mantém a sua riqueza harmônica, mas a sua curva dinâmica é atenuada, o que explica que ele se assemelhe à nota original Dó2 da oitava inferior:

2-54 6-4-2 Exemplo 53 do tópico 6-4-1, transposto uma oitava abaixo

Podemos, da mesma maneira, operar uma transmutação do violão de maneira a simular um piano; a riqueza harmônica do violão corresponderá então à do registro grave do piano, e a inclinação será restituída através de um corte sobre um ponto da dinâmica do violão, correspondente à da nota de piano procurada. Eis aqui o violão seguido de sua simulação de piano:

2-55 6-4-3 Pizzicato de violão seguido do mesmo transposto três oitavas abaixo

Quinta ideia: O âmbito do timbre harmônico

A noção de timbre harmônico não deve ser confundida com a noção, unicamente teórica, de espectro dos harmônicos superiores. Como iremos observar, os harmônicos inferiores ou, mais exatamente, a ressonância harmônica de um instrumento (a tábua harmônica, no caso do piano) também tem um papel fundamental na constituição do timbre harmônico, determinando, para cada instrumento, uma zona de ressonância privilegiada. Assim, mesmo deixando passar os principais harmônicos de um Lá extremo-grave de piano (em 27,5 Hz), ao filtrarmos os agudos acima de 300 Hz, desfigura-se o timbre pela supressão das ressonâncias agudas do instrumento:

2-56 6-5-1 Lá0 de piano (frequência fundamental f0 = 27-5 Hz), seguido do mesmo após a filtragem passa baixa (frequência de corte fc = 300 Hz)

Inversamente, suprimindo os graves abaixo de 2000 Hz de uma nota Dó7 em 2093 Hz, desfigura-se o timbre unicamente pela supressão das ressonâncias graves:

2-57 6-5-2 Dó7 de piano (f0 = 2093 Hz), seguido do mesmo após a filtragem passa alta (fc = 2000 Hz)

Por outro lado, usando-se um filtro passa banda de 200 a 1000 Hz, o mesmo Lá0 ocorre sem uma mudança tão expressiva de timbre:

2-58 6-5-3 Lá0 de piano (f0 = 27-5 Hz), seguido do mesmo após a filtragem passa banda de 200 a 1000 Hz

O Dó7 precedente atravessa ainda melhor este estreito canal. Ele se contenta, curiosamente, com uma banda passante de 500 a 2000 Hz, que mal contém a sua frequência fundamental (de 2093 Hz):

2-59 6-5-4 Dó7 de piano (f0 = 2093 Hz), seguido do mesmo após a filtragem passa banda de 500 a 2000 Hz

Sexta ideia: O timbre instrumental no contexto de causalidades

Vimos como, por vezes, é difícil reconhecer um timbre instrumental quando o som está isolado de seu contexto. Entretanto, mesmo o menor incidente na execução nos revela, inevitavelmente, a sua fonte:

2-60 6-6-1 Som de trompete com incidente

Pode-se dizer agora que há um excesso de considerações sobre timbre, mas, desta vez, empregamos o termo com uma outra acepção: não se trata mais de uma análise dos efeitos segundo os critérios harmônico e dinâmico, mas de uma referência à explicação causal, revelada pelos indícios sonoros.

As diversas relações musicais possíveis entre objetos podem agora ver-se perturbadas por considerações sobre timbre que chamam a atenção para a causalidade do som.

Por outro lado, quando um som é suficientemente afastado do seu contexto de causalidade, torna-se possível comparar musicalmente certos aspectos de objetos que seriam considerados heterogêneos em seus próprios contextos. Por exemplo, estes dois objetos complexos têm relações harmônicas:

2-61 6-6-2 Duas ressonâncias complexas

De fato, tratam-se das porções finais de duas amostras sonoras provenientes de uma percussão de chapa metálica e de sua imitação ao piano. Se compararmos as porções iniciais, a imitação será indiscutivelmente revelada - e o interesse será apenas anedótico:

2-62 6-6-3 Porções iniciais do exemplo 61, tópico 6-6-2 (chapa metálica, piano)

Outro exemplo, com mais duas porções finais que têm relações harmônicas:

2-63 6-6-4 Duas outras ressonâncias complexas

E agora a sua anedota causal, relatada pelas porções iniciais:

2-64 6-6-5 Porções iniciais do exemplo 63, tópico 6-6-4 (haste metálica, piano)

O contexto é, então, de extrema importância quando se quer comparar objetos. É por isso que reforçaremos as relações harmônicas de dois objetos se, ao invés de compararmos apenas suas porções finais, compararmos os dois objetos inteiros tocados sucessivamente, sendo o primeiro deles tocado de trás para a frente:

2-65 6-6-6 Ressonâncias do exemplo 63, tópico 6-6-4, encadeadas “em delta”

Conclusão: nossos propósitos foram se distanciando, aos poucos, do domínio a que se propuseram. Enquanto comparávamos bandas passantes ou dinâmicas (elementos do objeto físico) com a percepção de um timbre (elemento de um objeto musical) lidávamos com o estudo das correlações entre música e acústica. Mas a partir do momento em que introduzimos o contexto da causalidade, entramos no campo da psicologia da audição propriamente dita. Aqui, nossa alternativa é a das duas intenções de escuta: uma focada nos indícios que remetem às causas, outra focada no objeto sonoro no sentido estrito. É através desta “escuta reduzida” que nos conscientizamos do objeto em si mesmo, que nos esforçamos para descrevê-lo face a outros objetos. Descrever um objeto é falar de sua forma; confrontá-lo com outros objetos é definir o seu tipo.

Eis-nos às portas da morfologia e da tipologia.

Sétimo tema de reflexões: Morfologia dos objetos sonoros

2-66 7-1-0

Primeira ideia: Um aparelho electroacústico não é diretamente um instrumento musical

O homo faber é um experimentador, um manipulador, algumas vezes um artesão de bricolagem. Chegando a algum lugar, olha em volta de si e agarra tudo o que suas mãos podem alcançar. Aqui, hesitamos no limiar de uma porta, entre dois locais separados por um vidro. De um lado o estúdio, do outro a cabine. O estúdio guarda vestígios do passado: piano, tímpanos, contrabaixo. E, quem está ao piano, de coração aberto? É John Cage, um famoso artesão, ao mesmo tempo um músico, às vezes genial.

Ao piano preparado, ele toca assim:

2-67 7-1-1 Excerto de Three Dances, para dois pianos preparados, de John Cage

Mais ou menos nessa mesma época, na Rue de l’Université nº 37, em Paris, também fazíamos de tudo, porém de ambos os lados do vidro ao mesmo tempo. Pierre Henry, do lado do estúdio, tocava também o piano preparado, e eu próprio, Pierre Schaeffer, do lado da cabine produzia escalas em fugato, bem pouco ortodoxas, em um toca-discos de 1948. Assim foi confeccionada a peça a que chamamos, modestamente, Bidule en ut.

2-68 7-1-2 Excerto de Bidule en ut, de Pierre Schaeffer e Pierre Henry

Podia-se, então, tentar fazer música dos dois lados da linha divisória, mas isso também poderia ser feito no limiar de uma porta, através da qual, ao que parece, os ruídos jamais conseguiram alcançar e obter acesso ao domínio musical. Não era aí a entrada dos artistas. Quando muito, a dos artífices.

2-69 7-1-3 Excerto de Porte grince, de Jean Pierre Toulier

Assim, o ruído bate à porta da música e a faz ranger, gemer. Surge, então, a ambição de domesticar esses ruídos, de lhes impor nossas escalas; e disto decorre a ideia aparentemente lógica, mas que se revelará estúpida, de se ampliar o alcance da música a qualquer coisa e a qualquer um. Por exemplo, este cão:

2-70 7-1-4 Latido de cão

Rapidamente se tornou um cão sábio:

2-71 7-1-5 Cão “lírico”

Tentativas aflitivas como esta justificam a famosa frase “em matéria de invenção, avançamos recuando”. Obviamente, estas bricolagens provocarão o desprezo dos especialistas. Mas como continuar? Que ensinamentos extrair destas descobertas tão rapidamente caídas num insucesso?

Segunda ideia: Generalização do musical

Essas decepções podem ser facilmente explicadas: tentamos esvaziar, com colheres de chá, o que o alemão Mager chamou de “o oceano de sons diante de mim”.

Juntamos imprudentemente o concreto e o abstrato. Um ruído, retirado ao acaso de seu contexto causal, não pode ser facilmente incorporado numa estrutura musical cujas normas foram elaboradas durante séculos de prática. Aqui o natural se opõe ao cultural. Desenvolveram-se então três correntes de pensamento. Os ruidistas italianos, há alguns anos atrás, quiseram incorporar o ruído à música. Os eletrônicos de hoje querem domesticá-lo, submetendo-os aos seus parâmetros esquemáticos. Quanto a nós, se pensamos dever generalizar as normas do musical, é na condição de limitar a nossa escolha do sonoro àquilo que chamaremos de objetos convenientes. Eis alguns exemplos de tais objetos:

2-72 7-2-1 Sequência de sons complexos

Tais objetos estão distantes da sua origem natural e do solfejo de Danhauser... Merecem ser ouvidos por si mesmos, pois, assim como um som de violino, eles não existem para nos informar sobre acontecimentos extra-musicais. Alguém se queixa por serem ricos demais? Então aqui temos alguns mais pobres, mas também mais dóceis ao teclado numerado das sínteses eletrônicas:

2-73 7-2-2 Sons eletrônicos

Assim puderam se opor, como ocorreu entre 1950 e 1960, duas generalizações do musical: uma dita concreta, a outra dita eletrônica. Oposição estéril, que logo se tornaria o conflito de duas estéticas, tendo o problema momentâneo sido apenas de técnica. Como usar com igual habilidade estas duas fontes, estes dois inesgotáveis oceanos de sons? Qual seria o seu ponto comum, o seu método comum de análise?

Não poderemos responder tão depressa, pois, antes de descobrir a única noção essencial que possa ser comum a todos os seres musicais, a noção de objeto musical, é preciso insistir ainda no abandono de algumas ideias adquiridas. Dentre estas idéias e confusões, a mais perigosa é aquela que liga o efeito à causa, a nota ao instrumento.

Terceira ideia: O objeto não deve ser confundido com o corpo sonoro que o produz

2-74 7-3-1 Três sons percutidos em chapa metálica

Os sons que acabamos de ouvir provêm do mesmo corpo sonoro. Trata-se de uma chapa metálica, na qual foi acoplada uma corda esticada, que ora é atacada por diversos tipos de baquetas, ora é tocada com um arco:

2-75 7-3-2 Dois outros sons provenientes da mesma chapa metálica

Trata-se de um instrumento fornecedor de sons, mas não necessariamente um instrumento musical. De fato, ele não é capaz de produzir sequências de objetos ordenados, por meio de um registro em uma partitura voltada a estruturas convencionais. Pelo contrário, ele fornece uma diversidade considerável de objetos, cuja disparidade impossibilita uma reconciliação por meio de uma origem comum.

2-76 7-3-3 Dois outros sons (mesma chapa metálica)

É necessário apreciar esta disparidade em toda sua variedade, e estudar as diferenças de forma, de matéria, de produção sonora. Assim, fazemos o exercício de não mais recorrer às causas para confrontar os efeitos e a descobrir nos efeitos da sonoridade os critérios do objeto:

2-77 7-3-4 Quatro outros sons (mesma chapa metálica)

Logo, os critérios do objeto não poderão ser reduzidos aos dos corpos sonoros: um som não pode ser qualificado, de forma alguma, apenas porque provém das vibrações da madeira, do metal, de uma corda ou de uma membrana. O principal interesse está em comparar objetos que se assemelham, mesmo que provindos de corpos sonoros diferentes.

Nada melhor, para esquecer as proveniências, que o anonimato da fita magnética. Ela vai desempenhar o papel da cortina de Pitágoras, que ocultando o orador, velava o seu gesto, deixando transparecer somente o sentido do discurso.

Mas a fita magnética traz consigo outra armadilha, bem mais sutil. Nós cairíamos nessa armadilha se considerássemos o registo magnético como um objeto sonoro em si, ou ainda, se confundíssemos no mesmo fragmento magnético relações de causa-efeito entre novas causas hipotéticas e novos objetos possíveis.

Quarta ideia: O objeto sonoro não é, de forma alguma, o fragmento gravado

Entretanto, ambos se assemelham muito. Acreditamos ter esse fragmento seguro em nossas mãos, este fragmento que, ao ser lido na velocidade original de gravação, restitui o fenômeno sonoro inicial:

2-78 7-4-1 Objeto testemunho

Este fragmento de fita magnética não é somente uma memória; ele torna-se fonte sonora e instrumento, pois a cada pequena variação na velocidade ou no nível dinâmico podemos criar outros objetos, tão divergentes do objeto sonoro inicial como o poderiam ser os objetos produzidos por um mesmo corpo sonoro.

Eis a variante acelerada e ralentada:

2-79 7-4-2 Objeto do exemplo 78, tópico 7-4-1, acelerado e ralentado

Agora uma filtragem progressiva que varre a massa do som do agudo ao grave:

2-80 7-4-3 Objeto do exemplo 78, tópico 7-4-1, varrido por meio de filtragem

Qual é este parentesco que perdura entre estes objetos, apesar das suas diferenças? É um parentesco de forma e de matéria. Forma e matéria são os critérios essenciais de uma morfologia do sonoro.

No entanto, a partir da mesma fita, podemos obter objetos cuja morfologia será diferente. Uma variação de massa produzirá um objeto evoluindo na tessitura. A matéria do som terá perdido seu critério de fixidez:

2-81 7-4-4 Objeto do exemplo 78, tópico 7-4-1, variado em tessitura

Mas tais manipulações ainda guardam um ou mais traços comuns com o som inicial. São necessárias manipulações mais radicais para pervertê-lo:

2-82 7-4-5 Objeto do exemplo 78, tópico 7-4-1, homogeneizado e expandido na sua massa

Finalmente, podemos obter ainda desta fita, por corte, transposição e montagem, toda uma sequência extraída fisicamente do mesmo objeto, mas que não terá mais com ele nenhuma relação, nem sonora, nem musical:

2-83 7-4-6 Objeto do exemplo 78, tópico 7-4-1, manipulado por montagem

Quinta ideia: Não confundir objeto sonoro e objeto musical

Um objeto sonoro é delimitado por sua coerência causal; ele coincide com a curta história de um acontecimento acústico. Mas isso não assegura a unidade do objeto musical. É assim que uma chapa metálica, percutida em uma de suas bordas, produz o objeto seguinte, cuja unidade sonora é inegável:

2-84 7-5-1 Som de chapa metálica com parcial agudo

Logo percebemos que este objeto sonoro contém pelo menos dois objetos musicais, a julgar pela nossa escuta musical mais espontânea. Esta separação mental em dois objetos não se baseia na natureza das coisas, e teremos mesmo uma certa dificuldade em realizá-la fisicamente por filtragem. Uma filtragem que mantém os agudos conservará as principais características do ataque:

2-85 7-5-2 Exemplo 84 do tópico 7-5-1, após filtragem passa alta

Uma filtragem oposta só conservará a ressonância grave:

2-86 7-5-3 Exemplo 84, tópico 7-5-1, após filtragem passa baixa

É o momento de lembrarmos que as manipulações físicas em nada garantem os efeitos musicais. A transposição deste som é bem sucedida, mas somos sempre surpreendidos pelas relações que ela introduz nos componentes do objeto:

2-87 7-5-4 Exemplo 84 do tópico 7-5-1, transposto uma oitava e meia acima

Desconfiemos também dos cortes temporais. Um imã partido em pedaços dá como resultado vários ímãs. Assim também um objeto sonoro fracionado em, por exemplo, três pedaços, resulta em três novos objetos sonoros que possuem, cada um deles, um início, um corpo e um decaimento:

2-88 7-5-5 Objeto complexo, seguido de três objetos decorrentes de seu fracionamento

Sexta ideia: Objetividade do objeto

É um fato reconhecido que pessoas diferentes escutam diferentemente, e que uma mesma pessoa nem sempre escuta da mesma maneira. Precisamos, então, afirmar a objetividade do objeto, isto é, qualquer coisa no objeto que resista a essas variações, e permita que diversos ouvintes, assim como as diversas escutas de um mesmo ouvinte, confrontem tantos aspectos quantos forem os enfoques do ouvido, nos vários níveis de atenção ou de intenção de escuta. Façamos a experiência, escutando duas vezes o mesmo objeto. Trata-se de um objeto aparentemente simples, mas que parecerá mais rico na segunda escuta:

2-89 7-6-1 “Som sutil” (duas vezes)

Vamos nos esforçar para trazer à tona todas as facetas deste som, criando diversas versões e valorizando, a cada nova escuta, um elemento diferente. Por exemplo, vamos observar atentamente a forma geral do próximo objeto?

2-90 7-6-2 Forma do “som sutil” acentuada, depois achatada artificialmente

Insistimos o suficiente sobre a forma do objeto; queremos agora apreciar a sua massa. Então, ouçamos o mesmo objeto, desta vez com sua massa expandida, mais espessa:

2-91 7-6-3 Massa expandida artificialmente

E se quisermos agora ressaltar as características de grão que encontramos nas pulsações da sustentação e na cintilação da ressonância? No próximo exemplo, temos estes dois aspectos do grão artificialmente reforçados:

2-92 7-6-4 Grão reforçado artificialmente

E se quisermos qualificar o timbre harmônico do objeto? Aqui está uma variante na qual o som do exemplo anterior muda de cor:

2-93 7-6-5 Mudança de timbre harmônico

E se quisermos chamar a atenção para a allure, a comedida “movimentação” desse som? Temos aqui a sua versão exagerada:

2-94 7-6-6 Allure exagerada artificialmente

E se quisermos, por fim, recapitular todas estas características, mas um pouco mais ampliadas? Teremos, então, uma variação do objeto com mais ênfases:

2-95 7-6-7 Variante com ênfase simultânea no conjunto de características precedentes forma, massa, grão, timbre harmónico, “allure”

Estas manipulações artificiais que acabamos de realizar por meio de truques técnicos só respondem a finalidades pedagógicas. Elas antecipam o processo que vai tornando o ouvido gradativamente mais atento a cada vez que se escuta o mesmo objeto.

Sétima ideia: Morfologia interna da nota complexa

Os exercícios precedentes trataram de uma morfologia do objeto sonoro, a propósito das variantes de um mesmo objeto. Os mesmos exercícios deveriam ser realizados com objetos diferentes. No entanto, não teríamos sucesso se nos voltássemos a objetos muito díspares. Em outras palavras, uma morfologia prescinde de uma certa harmonia de características no tipo examinado. Mas, o que é um tipo de um objeto? O que são objetos do mesmo tipo senão aqueles que têm em comum certos traços morfológicos?

Morfologia e tipologia estão inter-relacionadas, remetendo-se uma para a outra, só podendo ser elaboradas através de aproximações sucessivas. Poupemos o ouvinte do longo caminho que tivemos que percorrer para chegar a estas conclusões, conduzindo-o diretamente para o cerne da nossa tipologia. Nele, encontramos um tipo de objeto denominado “nota complexa“. Mas, o que é uma nota complexa?

2-96 7-7-1 Exemplos de notas complexas do tipo percussão-ressonância

Não devemos confundir nota complexa e percussão seguida de ressonância. Sons sustentados também podem pertencer ao mesmo tipo de nota complexa:

2-97 7-7-2 Outros exemplos de notas complexas (tipo sustentado)

Este tipo de objeto contém dois critérios: é uma nota, isto é, uma forma fechada, e é uma nota complexa, quer dizer, um objeto, não necessariamente tônico, cuja massa ocupa um lugar fixo na tessitura. O mesmo tipo compreende, agora, espécimes mais pobres e espécimes mais ricos (“critério de matéria"):

2-98 7-7-3 Notas complexas mais e menos ricas

Estas espécies apresentam perfis dinâmicos, tanto mais originais como menos originais (“critério de forma”):

2-99 7-7-4 Notas complexas com diferentes perfis dinâmicos

Sétimo tema de reflexões: Morfologia dos objetos sonoros

3-01, 7-8-0

Oitava ideia: Morfologia externa, conjunto de objetos

Agora ficou fácil concordarmos com uma terminologia. Chamaremos de “objeto composto” as espécies de acordes formados por objetos que estejam mais ou menos fundidos no mesmo instante e no mesmo perfil.

Eis um objeto composto, seguido de seus dois componentes:

3-02 7-8-1 Objeto composto e seus dois componentes

Quando dois objetos se combinam em sucessão, isto é, formando mais uma melodia do que um acorde, diremos que se trata de um “objeto compósito”.

Ouçamos um objeto compósito, seguido dos seus dois constituintes:

3-03 7-8-2 Objeto compósito e os seus dois componentes

Estas meras receitas de fabricação têm o sentido literário de tema, da tradução em sons, da criação de sons. No sentido literário de versão, ou seja, da tradução de sons, da notação de sons, um objeto complexo e coerente não se deixa analisar facilmente. Somente os objetos menos coerentes se deixarão solfejar, sobretudo se tivermos a sorte de ouvir de antemão os objetos que o compõem:

3-04 7-8-3 Objeto menos coerente antecedido por seus componentes

Uma última experiência coloca em evidência o fundamento psicológico que define o objeto. Se há uma perturbação no objeto como a que segue:

3-05 7-8-4 Pizzicato com acidente

ou ainda como este outro:

3-06 7-8-5 Som de chapa metálica com acidente

o ouvido distinguirá, imediatamente, que um acontecimento suplementar se veio enxertar, como um parasita, no acontecimento principal. Será conveniente dizer que este objeto comporta agora um “acidente”. Tais objetos, mesmo acidentados, serão aceitos integralmente pelo ouvido musical. Em outros casos, eliminamos alguns detalhes sonoros indesejáveis pelo pensamento. Esse é o caso do “incidente” técnico, ao qual recusamos qualquer intenção musical:

3-07 7-8-6 Som afetado por um incidente técnico

Assim, demonstramos brevemente as noções fundamentais, dentre as quais é importante evitar algumas confusões: de um lado estão os corpos sonoros e as manipulações físicas, do outro lado estão o objeto sonoro e o objeto musical. Vê-se que uma morfologia do sonoro, uma aculogia por assim dizer, precede o musical: já não é mais acústica, e ainda não é música.

Oitavo tema de reflexões: Tipologia dos objetos sonoros

3-08 8-1-0

Primeira ideia: O tema e a versão

Em relação ao sentido literário de tema (da tradução de uma ideia em sons), costumamos ficar bem à vontade. Munidos de uma partitura e de uma orquestra experiente, podemos propor toda a sorte de combinações instrumentais, graças a uma notação que veio se tornando cada vez mais operacional. Podemos, assim, confeccionar objetos cada vez mais complexos:

3-09 8-1-1 Sequência orquestral complexa, extraída de Sigma, de Ivo Malec

e conferir-lhes perfis cada vez mais espontâneos:

3-10 8-1-2 “Trama” instrumental ordenada (Luc Ferrari)

No que se refere ao sentido literário de versão (da tradução de sons), decifrar esses blocos de sons constantemente empregados na música contemporânea revela ser um problema árduo, não somente para o músico amador, como também para o mais treinado profissional.

O músico ocidental se orgulha de saber escrever, mas será que ele sabe ouvir? Inversamente, ele ouve muito bem o som simples que se segue, no entanto, não saberá escrevê-lo:

3-11 8-1-3 Rufo prolongado de tam-tam

Uma vez que incluímos em nossas orquestras esses tam-tans vindos de fora, não podemos mais considerá-los instrumentos sub-desenvolvidos, nem nos contentarmos em qualificá-los grosseiramente de tam-tans graves. Esta designação negligente disfarça o nosso embaraço: não sabemos descrever aquilo que não sabemos grafar, e está claro que a culpada é a nossa notação, que é falha e limitada. Reconheçamos os seus limites: assim como ela não sabe descrever um tam-tam, ela também não consegue identificar, por exemplo, um agregado de notas no registo grave do piano como um acorde de sons tônicos. Esse tal agregado de sons é muito semelhante a uma percussão de chapa metálica:

3-12 8-1-4 Sons de chapa metálica e de piano

Não podemos, então, reduzir o universo sonoro a um sistema de sinais tão particulares. Pelo contrário, é preciso que se tome corajosamente o caminho inverso, partindo do som para elaborar um novo sistema de valores, mais geral, e que certamente conterá os valores tradicionais, na qualidade de caso particular e eminente.

Segunda ideia: Regras de identificação dos objetos sonoros

Sumarizar o sonoro é uma tarefa assustadora. Então, precisamos adotar um esquema seguro. Podemos abordar o som primeiramente como um índice, e também pelas significações que ele veicula, para, enfim, escutá-lo por ele mesmo, numa atitude muito particular à qual denominamos escuta reduzida. Esta escuta diz respeito apenas às qualidades do som: à forma e à matéria do objeto percebido. Ao nível do sonoro, no entanto, não queremos prejulgar tão rapidamente estas três intenções de escuta tão díspares que levam a nossa curiosidade: seja para a origem do som, seja para as significações do discurso, seja para o valor intrínseco dos sons. Gostaríamos de descobrir uma regra que se aplique provisoriamente a toda a cadeia sonora, e permita extrair daí o elemento bruto, isolado de suas estruturas, a que chamaremos precisamente de “objeto sonoro”. Ora, um objeto é sempre determinado pelas estruturas às quais ele pertence; assim como um elo encontra-se sempre intimamente associado à corrente que ele forma. Asseguremo-nos disto através dos exemplos que se seguem e que apresentam, esquematicamente, os três universos da linguagem: humana e animal, da música e do ruído:

3-13 8-2-1 Quatro exemplos de cadeias sonoras (linguagem falada, canto de pássaro, música e ruído)

Logo, verificamos claramente, nesses exemplos, como são diferentes as nossas intenções de escuta: para a linguagem falada, trata-se de compreender o que é dito – o que nos é recusado no caso do canto dos pássaros, infelizmente; quanto à música, sabemos bem que a ouvimos por ela mesma e não por causa de uma mensagem explícita da qual ela seria apenas o veículo; e, enfim, o ruído, assim como a linguagem, comporta um código que remete a uma causa, cuja anedota ele nos conta através dos índices que nos fornece. Despreocupada e espontaneamente, isolamos os objetos de suas cadeias. No caso da linguagem humana, a unidade será a palavra, o elemento do sentido:

3-14 8-2-2 Uma palavra

Para o pássaro exótico, podemos propor o trinado:

3-15 8-2-3 Trinado

Para a música, a nota, a não ser que tenhamos preferência pelo acorde ou pelo motivo:

3-16 8-2-4 Nota, acorde, motivo

E, para o ruído, recomendamos o conjunto de índices que revelam sua causa:

3-17 8-2-5 Ruído de acelerador

Graças ao contexto, notamos que as unidades assim seccionadas respondem a uma espécie de princípio interno, em que cada cadeia nos fornece apenas seus elementos específicos: o elemento do sentido (linguístico ou musical) ou o de indução causal. Para penetrar no nível do material sonoro bruto, precisamos ser muito mais brutais; e, se pretendemos ser universalmente compreendidos, é necessário que sejamos menos exigentes: ou seja, precisamos renunciar ao sentido, não mais recorrer ao auxílio do contexto e encontrar critérios de identificação do sonoro que contrariem os hábitos da análise espontânea.

Ouviremos quatro objetos isolados das cadeias precedentes, justificáveis apenas por uma regra geral a que chamaremos “articulação-apoio”, a qual tende a interromper a cadeia em cada instante em que se produz uma descontinuidade energética:

3-18 8-2-6 Quatro elementos: sílaba, pio estridente de pássaro, nota, aceleração

Assim nos apoderamos, pelo menos teoricamente, de uma regra comum aplicável a toda esta disparidade, a regra de unidade de emissão sonora. Sílaba ou pio, impulso instrumental ou fragmento de ruído, assim é este objeto sonoro concreto, de agora em diante isolado da sua conotação convencional ou habitual, apresentando-se a nós para a investigação mais geral do universo dos sons.

Terceira ideia: Critérios musicais do sonoro

Neste ponto, prestemos atenção. Mal acabamos de decidir submeter a generalidade dos objetos sonoros a uma regra de identificação das mais drásticas, e já devemos orientar a nossa escolha de critérios do sonoro para uma intenção musical. Efetivamente, seria insensato querer classificar o universo dos objetos sonoros sem ter decidido sobre a sua finalidade.

A busca por tais critérios consiste em orientar musicalmente o par articulação-apoio, em qualificá-lo, em reter o seu aspecto mais musical. A “articulação”, quando orientada para a linguagem verbal, esforça-se para caracterizar as consoantes. Negligenciaremos essas consoantes para nos concentrar no que chamaremos sustentação, isto é, saber se a energia despendida no momento da articulação foi comunicada instantaneamente ou num período de tempo mais prolongado.

Quanto ao “apoio”, a linguagem verbal pouco se preocupa em qualificar a entonação; ela volta-se mais para a cor das vogais. Mas nós negligenciaremos este aspecto vocálico do apoio para nos determos em sua localização na tessitura.

Graças à escolha deste novo par de classificação, “sustentação-entonação”, podemos nos reaproximar dos objetos sonoros retirados das cadeias precedentes, o que nos permitirá conhecer aquilo a que poderemos chamar de “critérios musicais do sonoro”. Assim, podemos comparar os seguintes objetos, combinando sustentação e entonação fixa:

3-19 8-3-1 Quatro exemplos de objetos sonoros, de sustentação e entonação fixa, retirados de cada uma das cadeias do exemplo 13, tópico 8-2-1, respectivamente

ou objetos de sustentação fixa, mas de entonações variáveis:

3-20 8-3-2 Quatro outros exemplos: sons sustentados de entonação variável

ou impulsos de entonação fixa, mas sem sustentação:

3-21 8-3-3 Quatro outros exemplos: impulsos de entonação fixa

ou, finalmente, impulsos de entonação variável:

3-22 8-3-4 Quatro outros exemplos: impulsos de entonação variável

Munidos desta bússola, de agora em diante saberemos navegar no oceano dos objetos sonoros, e poderemos refinar esta classificação. Vamos nos concentrar agora num domínio de objetos ainda muito geral, no entanto mais próximo da nossa finalidade: o domínio dos objetos convenientes, que instintivamente consideramos mais propícios ao musical.

Quarta ideia: Critérios de execução e de massa

Assim, chegamos à noção de “execução gestual”, que corresponde à realização instrumental da sustentação.

Este gesto pode ser dos mais breves: percussão ou pizzicato, e pouco importa agora tratar-se de cordas, peles ou madeiras, de sons tônicos ou complexos. Evidentemente, todos estes objetos sonoros têm por denominador comum uma execução do tipo impulso:

3-23 8-4-1 Cinco sons breves

Por outro lado, os sons sustentados evocam imediatamente um tipo de execução onde se revela tanto o agente (pelo gesto instrumental) como o mecanismo que alimenta a sonoridade:

3-24 8-4-2 Três sons sustentados

Mas aqui nasce um compromisso: uma passagem com impulsos rápidos constitui, sobretudo, uma sustentação. Mesmo vendo um arco fazer um ralentando, sabemos que se trata de uma série de micro-impulsos que asseguram a execução mais sustentada, a fricção mais límpida. Entre “impulso” e “som sustentado” coloca-se, então, uma terceira espécie de execução, chamada “iterativa”. O exemplo mais banal é o rufo nos instrumentos de percussão:

3-25 8-4-3 Rufo de bongô

Mas já tínhamos notado que um contrafagote no grave também comporta uma sustentação iterativa:

3-26 8-4-4 Nota de contrafagote

e que existem híbridos, nos quais se encadeiam, sem descontinuidade, as sustentações de fricção e de iteração:

3-27 8-4-5 Som de chapa metálica com sustentação híbrida (fricção contínua e iterativa)

Tendo, assim, descrito os três tipos de execução que qualificam a sustentação do som, definiremos agora os três tipos de massa que qualificam a entonação.

Sempre que a entonação não for somente fixa, mas também evocadora de uma percepção predominante de altura, diremos que se trata de uma massa onde prevalece o caráter “tônico”, e é assim que classificaremos as massas dos sons a seguir, embora esse caráter esteja obscurecido no terceiro exemplo:

3-28 8-4-6 Três sons de massa tônica

Mesmo que a qualidade de altura não seja predominante, a massa pode ocupar uma localização fixa na tessitura, mais ou menos estendida, que poderíamos qualificar de “irracional”, uma vez que não é redutível a uma altura exata. Diremos, então, que se trata de um som de “massa complexa”. Com este termo qualificaremos também os agregados de sons tônicos que se emaranham uns aos outros de maneira inextricável, em oposição àqueles sons que podem ser reduzidos a acordes:

3-29 8-4-7 Três sons de massa complexa

Enfim, se essa massa evolui em tessitura, diremos que estamos na presença de um caso de “massa variada”:

3-30 8-4-8 Três sons de massa variada

Quinta ideia: Tipologia dos objetos equilibrados

Acabamos de aplicar os critérios tipológicos classificando objetos de diversas procedências sem nenhuma preocupação quanto às referências instrumentais. Poderíamos agora realizar o exercício inverso e formar, espontaneamente, novos objetos que respondam aos nossos esquemas tipológicos? Assim, trabalharíamos com a ideia literária de tema e versão, e mostraríamos que não nos encontramos prisioneiros da construção de instrumentos convencionais. Para este exercício, utilizaremos, sucessivamente, tanto uma orquestra como um piano preparado, além de corpos sonoros concretos e sons eletrônicos. Para cada uma destas quatro possibilidades de fonte sonora, preencheremos uma tabela de nove espaços, cruzando os três critérios de execução (no eixo horizontal) e os três critérios de massa (no eixo vertical). Começamos pela primeira tabela, apresentando exemplos orquestrais relativamente simples e que ainda se permitem grafar em uma partitura tradicional.

Os objetos musicais da primeira linha desta tabela serão simbolizados pela letras N’, N e N", correspondendo, respectivamente, ao impulso tônico, ao som tônico sustentado, e ao som tônico iterado:

3-31 8-5-1 Três sons tônicos de origem instrumental: N’, N, N”

A segunda linha contém o impulso complexo, o som de massa complexa sustentada e o som de massa complexa iterada, representados por X', X e X":

3-32 8-5-2 Três sons de massa complexa, de origem instrumental: X’, X, X”

A última linha contém o impulso variado, o som de massa variada sustentada e o som de massa variada iterada, representados por Y', Y e Y":

3-33 8-5-3 Três sons de massa variada, de origem instrumental: Y’, Y, Y”

Agora, vamos iniciar o preenchimento da nossa segunda tabela, com os objetos musicais extraídos do piano preparado, ou manipulados após a gravação, e que serão novamente simbolizados pela letras N’, N e N”:

3-34 8-5-4 Três sons tônicos de piano preparado: N’, N, N"

X’, X e X”:

3-35 8-5-5 Três sons de massa complexa, de piano preparado: X’, X, X"

Y’, Y e Y”:

3-36 8-5-6 Três sons de massa variada, de piano preparado: Y’, Y, Y"

Agora, ainda mais distantes da construção tradicional de instrumentos, vamos iniciar o preenchimento da nossa terceira tabela, com os sons de origem concreta, que correspondem às mesmas nove categorias tipológicas anteriores. São eles: o impulso tônico, o som tônico sustentado e o som tônico iterado:

3-37 8-5-7 Três sons tônicos de origem concreta: N’, N, N"

Na sequência, temos o impulso complexo, o som de massa complexa sustentada e o som de massa complexa iterada:

3-38 8-5-8 Três sons de massa complexa, de origem concreta: X’, X, X"

Por fim, temos impulso variado, som de massa variada sustentada e som de massa variada iterada:

3-39 8-5-9 Três sons de massa variada, de origem concreta: Y’, Y, Y"

No preenchimento da nossa quarta tabela, repetimos o mesmo, mas desta vez com sons de origem eletrônica: N’, N e N”:

3-40 8-5-10, Três sons tônicos de origem eletrônica: N’, N, N"

X’, X e X”:

3-41 8-5-11, Três sons de massa complexa, de origem eletrônica: X’, X, X"

Y’, Y e Y”:

3-42 8-5-12, Três sons de massa variada, de origem eletrônica: Y’, Y, Y"

Sexta ideia: Objetos redundantes ou muito breves: critérios temporais

Todas estas tabelas pressupõem uma duração otimizada, aquela que melhor corresponde à memória auditiva, beneficiando-se das percepções residuais do cérebro. É neste aspecto que os objetos precedentes são considerados bem “equilibrados”. Ora, um desequilíbrio temporal provocará a saída dos objetos da nossa tabela, por um ou outro excesso em suas dimensões, tornando-as muito breves ou muito longas.

Aqui estão alguns sons que são muito breves:

3-43 8-6-1 Célula (“K”)

Mas basta que se encontrem um pouco isolados, apresentados com margens de silêncio, para serem melhor percebidos:

3-44 8-6-2 Elementos isolados da célula K, exemplo 43 do tópico 8-6-1

Esta célula foi fabricada pela aproximação de impulsos provindos dos exemplos anteriores; ela não difere muito de uma célula realizada com orquestra:

3-45 8-6-3 Célula instrumental

Podemos também obter outras células, realizando cortes e montagens em uma amostra de ruídos:

3-46 8-6-4 Célula extraída da amostra do exemplo 45, tópico 8-6-3

O desequilíbrio na simetria provém do comprimento dos objetos, ou mais exatamente, de sua redundância. Enquanto os exemplos precedentes continham muita informação, os exemplos seguintes contêm muito pouca. Estes objetos sonoros se perpetuam como começaram: são agora “sons homogêneos” ou quase homogêneos:

3-47 8-6-5 Som homogêneo de orquestra, seguido de som homogêneo concreto

Sons redundantes também podem manter sua homogeneidade por iteração:

3-48 8-6-6 Som homogêneo iterativo

Falemos agora das “tramas”, que são similares aos sons homogêneos. São objetos longos que contêm pouca informação e que se desenvolvem gradualmente, sem passar por uma mudança significativa de massa:

3-49 8-6-7 Trama harmônica

Um caso limite da trama é o de um som tônico que evolui lentamente em cor e em forma:

3-50 8-6-8 Trama tônica

Chamaremos de “tramas complexas” aos conjuntos de massas complexas ou variadas e que evoluam lentamente, tendo, por vezes, um caráter iterativo:

3-51 8-6-9 Trama complexa iterativa

Sétima ideia: Objetos excêntricos

Após estes objetos redundantes, falta-nos falar de seus parentes longínquos, membros excêntricos que negarão, sem dúvida, a família dos objetos convenientes. Eles carregam informações em demasia, fornecem índices demais, cansam o ouvido pela abundância. Este tipo de objeto assume o estranho paradoxo de combinar incoerência musical, em função de seus efeitos, com a cansativa lógica da sua gênese, em função de suas referências causais:

3-52 8-7-1 Amostra de uma arcada de violino

No perímetro dos objetos musicais, uma casa modesta abriga este ser inestético sob o rótulo de “amostra”: tais são os efeitos contraditórios de uma execução coerente, porém deplorável, fruto de uma arcada desajeitada ou, talvez, executada com má vontade.

Mas a amostra pode passar, displicentemente, de um excesso a outro:

3-53 8-7-2 Amostra de uma “haste metálica”

Desta vez, esta amostra - a que poderíamos chamar também de trama - peca por um excesso de organização quase automático. Oscilamos, assim, entre uma informação muito banal e uma informação muito aleatória.

3-54 8-7-3 Amostra de ruídos com a boca

A palavra “aleatório” foi pronunciada: também aqui os extremos se tocam:

3-55 8-7-4 Amostra de notas “Y” (impulsos variados)

A repetição de uma multitude de causas semelhantes geralmente produz os mesmos efeitos sonoros que a permanência de uma causa única; tais objetos podem ser chamados de “acumulações”:

3-56 8-7-5 Pedras caindo, seguidas de crepitar de carvão em combustão

A queda de pedras ou o crepitar de combustão podem ser percebidos tanto como execuções contínuas quanto como execuções acumulativas, de acordo com o ouvido de quem as recebe. Aqui o acaso exerce o seu fascínio, acaso que a partitura toma voluntariamente como modelo:

3-57 8-7-6 Tutti instrumental do tipo acumulação

Dois tipos particulares, que ainda estão por se definir, provêm da mesma oposição entre redundância e originalidade. Refiro-me aos “pedais” e às “notas longas”.

Generaliza-se facilmente a noção de pedal, já utilizada em música, observando que há, aqui, uma redundância decorrente da repetição de uma célula original, formando ostinatos:

3-58 8-7-7 Três pedais em ostinato

Mas, por outro lado, encontramos um objeto intermediário entre a nota equilibrada e a trama. Este objeto é volumoso demais para ser uma nota e evolutivo demais para ser uma trama, além de possuir sua própria lógica interna. É uma nota longa:

3-59 8-7-8 Quatro notas longas (“W”): instrumentais e concretas

Oitava ideia: Relatividade das classificações tipológicas

Esperamos que tenha ficado claro o quão grosseira permanece nossa classificação tipológica; o seu propósito é simplesmente o de preparar o caminho para o estudo da música e da morfologia do sonoro. Um último mal-entendido seria o de exigir desta tipologia classificações unívocas, nas quais todos os sons poderiam ser classificados de maneira definitiva. Chamamos a atenção para o fato de que um objeto sonoro pode muito bem saltar de uma categoria para outra, de acordo com o grau de atenção que lhe concedemos e com o nível de complexidade que lhe confere o contexto. Esta observação poderá evitar numerosas discussões inúteis e perdas de tempo.

3-60 8-8-1 Pedal em ostinato

Tipologicamente, não há nada que nos obrigue a considerar este som na sua totalidade ou nos seus detalhes. A questão que se coloca, de diferentes maneiras para cada ouvinte, não é a de uma decisão arbitrária, mas sim a de uma convenção perfeitamente deliberada para considerar este objeto sob um ou outro nível de análise. Tomado em sua totalidade, trata-se de um pedal em ostinato. Mas também pode ser decomposto em células, caracterizadas individualmente por seu timbre instrumental:

3-61 8-8-2 Três células extraídas do exemplo 61, tópico 8-8-1

Estas células, por sua vez, podem ser decompostas em sons iterativos:

3-62 8-8-3 Dois sons iterativos extraídos do exemplo 62, tópico 8-8-2

E finalmente, podemos considerar isoladamente cada uma das iterações:

3-63 8-8-4 Dois impulsos extraídos do exemplo 63, tópico 8-8-3

Nono tema de reflexões: Passando à prática

3-64 9-0

3-65 9-1-0 Fragmento de Planètes, de Ivo Malec

A tipologia ainda não é a música. É apenas um pesado fardo que veicula os seus materiais. Por vezes, chegam à oficina do compositor massas enormes, como esta:

3-66 9-1-1 Fragmento 1 de Violostries, de Bernard Parmeggiani

e também massas finas e farpadas.

3-67 9-1-2 Fragmento 2 de Violostries, de Bernard Parmeggiani

Estes dois objetos são provenientes da mesma fábrica, um violino:

3-68 9-1-3 Fragmento 3 de Violostries, de Bernard Parmeggiani

Vã curiosidade. Pouco importa a sua origem, desde que tenhamos o objeto...

3-69 9-1-4 Fragmento 1 de L’Instant mobile, de Bernard Parmeggiani

Objeto esse que, por sua vez, produzirá muitos outros:

3-70 9-1-5 Fragmento 2 de L’Instant mobile, de Bernard Parmeggiani

Seria necessário acrescentar que a oficina do compositor ficará abarrotada apenas de objetos banais e vulgares se ele mesmo não for capaz de fabricar seus próprios materiais com originalidade? Para domesticar os sons eletrônicos desta maneira, é necessário ser, como Bernard Parmeggiani, não apenas músico mas também engenheiro de som.

3-71 9-1-6 Fragmento 3 de L’Instant mobile, de Bernard Parmeggiani

Inversamente, pode acontecer que um amante da música orquestral, como Ivo Malec, confesse que a articulação rítmica de sua partitura foi inspirada nas manipulações eletroacústicas de mixagem:

3-72 9-2-1 Fragmento orquestral de Sigma, de Ivo Malec

Após um tempo de laboratório em estúdios eletroacústicos, os músicos experimentais regressaram espontaneamente à orquestra, trazendo novas ideias. Aqui, por exemplo, temos uma estrutura intrincada de sustentações, baseada nas repetições delicadamente variadas de uma única nota:

3-73 9-2-2 Fragmento 2 de Ivo Malec: estrutura de sustentações em Echos

Um som tônico surge agora no mesmo grau de sutileza desta leve nota complexa:

3-74 9-2-3 Fragmento 3 de Ivo Malec: nota complexa em Sigma

mais legível que uma nota mais compacta:

3-75 9-2-4 Fragmento 4 de Ivo Malec: outra nota complexa, mais compacta, em Sigma

E, num desenho mais elaborado, veremos equilibrarem-se tanto os ornamentos melódicos quanto a dinâmica das sustentações e dos apoios:

3-76 9-2-5 Fragmento 5 de Ivo Malec: melodia e jogo de sustentações em Planètes

Como é que se sobrepõem o jogo tradicional dos graus e o novo jogo das formas? Tomemos um exemplo bastante elementar: um sforzando de trompa é prolongado pela ressonância de um vibrato de língua de flauta, que é logo substituído por um vibrato de língua de trompete, que continua imperturbável:

3-77 9-2-6 Fragmento 6 de Ivo Malec: trompa, flauta e trompete em Echos

Pode ser que a escuta tradicional, ocupada exclusivamente com a percepção dos graus, deva ser refinada. Será necessário que pratiquemos para perceber objetos pela sua forma geral, ao menos em casos simples:

3-78 9-2-7 Fragmento 7 de Ivo Malec: objeto variado (Y) em Planètes

Neste vaivém entre o estúdio e a orquestra, há alguma segurança. Os números de um e as convenções do outro são duas preciosas muletas para a nossa caminhada incerta. Mas eis algo que nos incomoda:

3-79 9-3-1 Fragmento de Variations pour une porte et un soupir, de Pierre Henry

Ora essa! É uma porta! No entanto, Pierre Henry não tenta mais fazê-la percorrer escalas, mas dela extrair ritmos, grãos e perfis, a partir dos quais ele irá produzir cerca de vinte e cinco variações. Experiência marginal, talvez, mas que mede duas espécies de tensões: uma que nos retém pelas aderências de um primeiro código, o dos ruídos, e outra que nos atrai para uma linguagem ignorada, na qual ainda não sabemos quão longe podemos ir. François Bayle nos propõe agora uma experiência menos austera, mas igualmente tendenciosa:

3-80 9-3-2 Fragmento de Trois portraits d'un Oiseaux-Qui-N'existe-Pas, de François Bayle

Regressemos agora a uma obra mais familiar, notavelmente calculada, e das mais contemporâneas:

3-81 9-3-3 Rãs dos trópicos

Somente um africano poderia reconhecer nestas musicistas as rãs de seus trópicos. O debate mais estéril é aquele que opõe o abstrato e o concreto, ambos presentes em todos os objetos. E a única convenção musical que resiste é a do audiovisual, que consagra a música enquanto espetáculo. Graças à acusmática do alto-falante, François Bayle pôde misturar sutis fricções de metal com as cordas do Quarteto Parrenin:

3-82 9-3-4 Fragmento de Archipel, de François Bayle

Resta-nos a verdadeira questão: a que realizações nos conduzem os materiais? Alguns prestam-se, como indica o nosso solfejo, a generalizar a nota, o motivo, na esperança de reencontrar uma espécie de discurso.

Eis um exemplo, e não é sem razão que Edgardo Canton o chama de Vozes Inauditas, uma obra que ele espera que fale:

3-83 9-4-1 Fragmento de Voix Inouïes, de Edgardo Canton

Mas outros materiais conduzem a uma plástica musical, a construções que se assemelham às de uma arquitetura, a formas esculturais. Objetos imensos, maravilhosamente calculados, impõem-se à nossa contemplação:

3-84 9-4-2 Fragmento de Metastasis, de Iannis Xenakis

Reconhecemos Xenakis. É mesmo uma música de arquiteto, diremos nós. Mas ele chega a usar, em Eonta, notas com os perfis retrogradados, certamente inspiradas em alguma lembrança experimental:

3-85 9-4-3 Fragmento de Eonta, de Iannis Xenakis

Já que afirmamos que, dominados os meios, somente as idéias importam, vamos agora interrogar um compositor acerca das ideias que o inspiram?

Examinemos uma obra de Luc Ferrari, cuja primeira versão foi apresentada em Gravesano, por iniciativa do saudoso Hermann Scherchen, a quem gostaríamos de dedicar o presente trabalho.

O que nos interessa, neste Tautologos, é ter, enfim, uma espécie de explicação por parte do autor. Eis a sua proposição inicial:

3-86 9-5-1 Fragmento de Tautologos II, de Luc Ferrari: exposição

O autor nos adverte que a forma geral será baseada no que acabamos de ouvir. E a explicação do título é que os mesmos objetos, combinados de diferentes maneiras, irão dizer coisas diferentes e passar do descontínuo ao contínuo. Começamos com o triunfo do descontínuo:

3-87 9-5-2 Fragmento 2 de Tautologos II, de Luc Ferrari: descontínuo

Tais aglomerados de notas variadas, cujas assonâncias formam rimas, irão logo ser perturbados pela irrupção de objetos firmemente delineados, insubordinados, desordenados:

3-88 9-5-3 Fragmento 3 de Tautologos II, de Luc Ferrari: desordem

Como havíamos previsto, no meio da obra o todo se mistura e adensa sua massa por acumulação de formas cada vez mais espessas:

3-89 9-5-4 Fragmento 4 de Tautologos II, de Luc Ferrari: aparição de massas

E em todo o final da obra são dispostas pesadas tramas que põem em relevo o brilho dos sons breves, e consagram assim a reconciliação dos extremos.

3-90 9-5-5 Fragmento 5 de Tautologos II, de Luc Ferrari: trama final

Temos nos esforçado para seguir as proposições do autor. Mas será que devemos confessar que nos sentimos mais convencidos pela eloquência da obra que pelo nosso comentário? Alguém ja dispõe dessa famigerada metalinguagem capaz de descrever a música em sua totalidade?

Ousemos, então, afirmar que a descrição dos objetos musicais não explica a música. Assim como a acústica não predetermina o valor desses mesmos objetos.

Distinguimos, assim, três estágios, articulados por correlações. Se o nosso solfejo generalizado é indispensável para descrever e nomear os objetos constituintes, ele falha em fornecer uma chave imediata das suas possíveis combinações. Mas o nível da linguagem, felizmente, é de todos o mais instintivo.

Os fragmentos que acabamos de ouvir são prova disso e demonstram também que, na maior parte das vezes, é durante a realização prática que se manifesta a função dos objetos. É precisamente por isso que a música não dispõe de outro estatuto, senão o da linguagem ou da ciência. A música se molda a partir do seu próprio interior, nutre-se da sua própria substância, num vaivém entre conjunto e elemento, entre estrutura e objeto.

Renunciemos às sintaxes prematuras enquanto a linguagem ainda está se modificando e tateando em busca de uma expressão. Tentemos descobri-la pela força de fazer e de escutar. Por vezes brotará a comunicação. Quando isso acontecer, maior será o nosso poder, e os sons se terão feito música tal como uma arquitetura à qual, subitamente, fosse concedida a fala. E teremos tão menos a dizer.

3-91 9-5-6 Fragmento orquestral de Planètes, de Ivo Malec